quinta-feira, 30 de julho de 2015

Sobre o que não se quer explicar

Não dá para explicar muito bem como é, só que é uma vontade muito grande de me fazer mal. Algum mal, qualquer, e então ajo da forma que melhor sei me punir. E depois, um pouco de dor, um pouco de sangue, e fim.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Sobre as escolhas

Não tenho escolha. Rachel pensou em como aquilo era verdade, e a respeito de tudo: a gente tem uma chance no começo, mas, se não fizer a escolha certa, como ela não fizera, as opções se afunilam bem depressa. Como tentar atravessar um rio, pensou. Se você der um passo errado, pisar em uma pedra solta ou em um buraco, a correnteza leva você embora e a única coisa a fazer é tentar sobreviver.

Não deveria ser assim, disse Rachel a si mesma, e ela sabia que para algumas pessoas de fato não era. Alguns podiam fazer uma escolha errada e mesmo assim seguir seu caminho sem se aborrecer mais que uma vaca espantando uma mosca com o rabo. Isso tampouco estava certo. Com a raiva que ela sentiu ao pensar nisso, ficou mais fácil ir até o depósito pegar o machado.

- Ron Rash, in Serena, p. 80.

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Quando livros dizem por você, o que você não é capaz de dizer

Enquanto voltava para casa, lembrou-se dos dias que se seguiram ao funeral, quando o silêncio da casa se tornou tão palpável (...). Até que certa manhã ela começou a sentir um alívio da dor, como se finalmente começasse a reduzir a pressão, diminuindo seu poder de ferir. Naquele mesmo dia, Rachel não conseguiu recordar para que lado o pai repartia o cabelo, e entendeu mais uma vez o que já tinha aprendido aos cinco anos, quando a mãe fora embora: o que torna suportável a perda de alguém amado não são as lembranças, mas o esquecimento. Primeiro esquecia-se das pequenas coisas - o aroma do sabonete com o qual a mãe se lavava no banho, a cor do vestido que ela usava para ir à igreja - , depois de algum tempo, o som de sua voz, a cor do cabelo. Rachel ficou impressionada com o quanto podia esquecer, e tudo que esquecia tornava aquela pessoa menos viva dentro de si, até ser capaz de finalmente suportar a dor. Com o tempo, era possível se permitir lembrar, até desejar lembrar. Mas, mesmo assim, a sensação daqueles primeiros dias podia voltar para lembrar-lhe que a dor continuava ali, como um velho arame farpado escondido no cerne de uma árvore.

- Ron Rash, in Serena, p. 53.

domingo, 19 de julho de 2015

Vai doer... como hoje dói

Os olhos dela ensinam estrelas a brilhar
Vai doer
Os braços dela ensinam ondas a quebrar
Vai doer, vai doer, mas depois vai passar, rosa
Vai você que eu não tardo em chegar, rosa

Os olhos dela ensinam ondas a quebrar
Vai doer
Os braços dela ensinam estrelas a brilhar
Vai doer, vai doer, mas depois vai passar, rosa
Vai você que eu não tardo em chegar, rosa

- Wado, in Rosa.

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Sobre quando me traíres

GILBERTO: Na casa de saúde eu pensava: nós devemos amar a tudo e a todos. Devemos ser irmãos
até dos móveis, irmãos até de um simples armário! Vim de lá gostando mais de tudo! Quantas coisas
deixamos de amar, quantas coisas esquecemos de amar. Mas chego aqui e vejo o quê? Que ninguém
ama ninguém, que ninguém sabe amar ninguém. Então é preciso trair sempre, na esperança do amor
impossível. Tudo é falta de amor: um câncer no seio ou um simples eczema é o amor não possuído!
SEGUNDO IRMÃO: Bonito!
PRIMEIRO IRMÃO: Que papagaiada!
TIO RAUL (Contido): — E, finalmente, qual é a conclusão?
MÃE (Para si mesma): — Meu filho não diz coisa com coisa...
GILBERTO: É que Judite não é culpada de nada! E, se traiu, o culpado sou eu, culpado de ser traído!
Eu o canalha!

 - Nelson Rodrigues, in Perdoa-me por me traíres, p. 25.

Aquilo que não dizes...

TIO RAUL: E outra coisa: por que falas tão pouco, porque quase não falas, por que dizes apenas “sim” e “não”, por que finges e por que prendes os lábios?
GLORINHA (Fora de si): — Não sei!
TIO RAUL: E como não falas nunca, a conclusão é que sou muito curioso de ti, de tua alma, de tudo
que não dizes, de tudo que não confessa. (exasperado, virando-se na direção de dia Odete) Porque eu estou farto de silêncio, farto de coisas não ditas.

- Nelson Rodrigues, in Perdoa-me por me traíres, p. 29.

domingo, 12 de julho de 2015

Sobre amar alguém

Às vezes eu gostaria de ser um arquiteto para poder dedicar um edifício a uma pessoa. Uma superestrutura que romperia as nuvens e continuaria subindo até o âmago do céu.

- Josh Malerman, in Caixa de pássaros, prefácio.

Processos de institucionalização e a mortificação do eu

Instituições de Longa Permanência para Idosos, as ILPIs, são locais destinados à assistência integral – diga-se, biopsicossocial – de pessoas com 60 anos de idade ou mais, que não possuem possibilidade de permanecerem com a família ou em seu domicílio, sejam dependentes (física/mentalmente) ou não. Com elas, o Estado busca garantir a manutenção dos direitos dos idosos, conforme suas necessidades coletivas e individuais, atendendo, em sua maioria, idosos com poucas condições financeiras. Sua emergência é uma tentativa de suprir as problemáticas inerentes ao aumento significativo do contingente de idosos no país, já que o fenômeno da longevidade avança a passos largos no Brasil.

Por outro lado, há outra preocupação que deve ser levado em conta: a qualidade dos serviços oferecidos por esses locais. Em termos psicossociais, diversas pesquisas têm apontado que a estrutura institucionalizada da ILPI reprime a expressão da subjetividade e da intersubjetividade de seus moradores, favorecendo que as identidades e as relações entre as pessoas se tornem cada vez mais empobrecidas. Isto se expressa nas normas que restringem não somente as saídas, mas padronizam a rotina institucional, portanto com pouco ou nenhum espaço para as peculiaridades de cada pessoa. Infelizmente, esta é a realidade de parte considerável das ILPIs de nosso país, principalmente em se tratando de instituições públicas e filantrópicas.

Com o apoio da psicanálise, aprofundamos ainda mais esta preocupação com o sujeito: para além do declínio físico, social e intelectual dos idosos, justificada pela deficiência de incentivos para manutenção de atividades que superem a rotina do local e a carência de profissionais; há uma relação entre institucionalização e perda de desejo, que traria como consequência a morte simbólica, ou seja, o esfacelamento do eu, antes da morte do corpo.

Norbert Elias trata da morte não apenas como fim efetivo da vida diante do adoecimento e do envelhecimento, mas como uma partida que muitas vezes começa muito antes. O sujeito começa a morrer quando é isolado, quando há o “gradual esfriamento de suas relações com as pessoas a que era afeiçoado, quando há uma separação dos seres humanos em geral, daquilo que dá sentido e segurança, situação muito comum em processos de institucionalização. Também Lacan e Messy apontam a morte de ordem simbólica como precursora da morte física: além da morte física, caracterizada pela decomposição da carne, há também a morte simbólica (psíquica e social), vivida com a exclusão da atividade produtiva e/ou reprodutiva – a exemplo a aposentadoria, e a entrada na menopausa no caso das mulheres – e com a perda de referências e desinvestimento no ego.

Seja qual for a forma com que falemos da morte, não fugimos de um ponto central: de uma forma ou de outra, ela inviabiliza a existência do sujeito. E em que a institucionalização favorece isto? Quando a rotina institucional é opressiva, quando estabelece que as normas e os horários fixos rígidos são a única forma encontrada para manter o funcionamento, mesmo que custem caro à subjetividade de seus moradores. É aí que o controle disciplinar age sobre o corpo e o coloca em relação com o gesto eficiente, o panóptico foucaultiano.

Com o tempo o sujeito se apaga. Suas marcas, suas identidades se esfacelam e evaporam. Com o passar dos meses e dos anos, sobressai o que Goffman chamou de mortificação do eu: a especificidade de subjetividade a ser seguida dentro da ILPI não permite investimento no desejo do eu sobre objetos significativos. Há uma falta que vai para além da falta estruturante do eu, trata-se de um isolamento que favorece o apagamento subjetivo, a morte simbólica. O dispositivo institucional promove a restrição de encontros, importante para a formação e manutenção de laços sociais significativos. “Envelhece-se”. Não um envelhecer do tempo cronológico, mas um envelhecimento no sentido de haver algo em seu olhar dizendo que aquele idoso não está ali há apenas alguns meses ou anos, mas muitos anos, talvez uma vida inteira. Os efeitos do poder institucional sobre estes sujeitos produzem então uma sobrevida, similar ao que Peter Pelbart percebe nos campos de concentração estudados por Giorgio Agamben. O mulçumano “era o morto-vivo, o homem-múmia, o homem-concha. Encurvado sobre si mesmo, esse ser bestificado e sem vontade tinha o olhar opaco, a expressão indiferente, a pele cinza pálida, fina e dura como papel, começando a descascar, a respiração lenta, a fala muito baixa, feita a um grande custo. (...) Exausto demais para compreender aquilo que o esperava em breve, a morte. Essa vida não humana já estava excessivamente esvaziada para que pudesse sequer sofrer (PELBART, 2006, s./p.)”.

Isto escapa à ordem de kronos. É um tempo que remete a kairós e, em pouco tempo, estes idosos adoecem e morrem, ou passam longos anos vivendo nessa sobrevida, que nada tem a ver com os anos cronológicos. A morte subjetiva e social impera e dá a ordem limítrofe que a separa da morte física: o corpo não aguenta mais. E o que é que este corpo não aguenta? “Ele não aguenta mais tudo o que o coage, por fora e por dentro. (...) Não aguenta mais a mutilação biopolítica, a intervenção biotecnológica, a modulação estética, a digitalização bioinformática do corpo, o entorpecimento” (PELBART, 2006, s/p.). O adestramento civilizatório, que impõe modos de ser ao corpo do sujeito contemporâneo. Persevera apenas silenciamento do corpo e a docilização impostos pelas disciplinas, pelas Instituições, pelos discursos do saber. O corpo morre quando não é mais capaz de aguentar a mortificação a que é submetido, fruto de práticas fascistas, práticas autoritárias e totalitárias de vigilância e disciplina. O corpo disciplinado em instituições controladoras morre quando perde a capacidade de ser afetado pelos acontecimentos do mundo, quando se torna blindado. Sob a ótica da psicanálise, poderíamos dizer que a mortificação do corpo seria sintoma da relação entre um corpo impenetrável e um Pai onipotente e que não dá tréguas – “um pai institucional”.

E o que fazer, então, quando a instituição de assistência, que é um direito do cidadão, se torna palavra de ordem e opressão que impossibilita a existência do sujeito?

Referências:

ELIAS, N. A solidão dos moribundos – seguido de “Envelhecer e morrer”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
FOUCAULT, M. História da loucura na Idade Clássica. 6ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 1999.
GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. 8. Ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.
MESSY, J. A pessoa idosa não existe. São Paulo: Aleph, 1993.
PELBART, P. Vida Nua, vida besta, uma vida. In: Revista Trópico. 2006. Disponível em: http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/2792,1.shl Acesso em: 26/05/2015

- Originalmente publicado em Obvious

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Dúvida

Hoje a dor novamente bateu a porta.
Saí correndo. Cabelo solto, vento forte, lágrimas batendo pelos muros cinzas da cidade.
Por que não sinto mais você?

Pequenas celicidades (in)certas

Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para vê-las assim.

- Cecília Meireles, 1964.