sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Das voltas que a vida dá

 Fiquei um tempo sem passar por aqui. Dois anos. Pois é, a gente acha que passa, que foi para outro lugar, que as coisas já mudaram tanto que não faz nem sentido, mas nos encontramos com nosso próprio eu em uma versão desatualizada ali na próxima esquina.

Hoje a ansiedade está batendo rasgando. Está saltando do peito. Está difícil de aguentar. "Vou tomar um remedinho, porque...". Porque anda doído mesmo. Hoje eu subi no ônibus e só fiquei com vontade de chorar. Coloquei o óculos escuro para não chamar muita atenção. Fiquei com medo, com a garganta apertada. Com aquela certeza de que catástrofes vão seguir acontecendo. Como já aconteceu. Que ia ter uma assalto. Que eu ia reagir. Que meus pais iam vir para levar meu corpo inerte, peso morto, para casa.

domingo, 1 de agosto de 2021

Ausências.

Era certamente um domingo. Possivelmente um dia quente, de verão. Eu lembro porque me recordo bem do calçãozinho jeans soltinho sobre as coxas grossas. Lembro também dos braços rechonchudos, as curvinhas bem marcadas, mãozinhas firmes no guidão. Havia muitos sorrisos naquelas cenas. Meus, seus. Você corria um pouco comigo, depois me soltava e eu seguia sozinha, você ia atrás gritando, sorrindo comigo, me incentivando a seguir. E eu ia até onde podia, até onde precisava fazer a curva, e então eu freava e precisava voltar carregando a bicicleta, ainda correndo. Quem diria que a vida seria a repetição dessa cena tantas outras vezes… Você atrás, indo comigo até um certo ponto, depois eu seguindo sozinha até onde consigo, mas eu nunca fui de insistir o bastante nas curvas e então precisava descer, e voltar para você. Essa é a lembrança mais vívida que eu tenho de você, daquele período da vida em que a gente ainda sorria com certa frequência.

Quinze anos depois. Outro pedaço de você. Nas fotos você sorri depois do fotógrafo insistir muito. O meu sorriso já não tão sincero, depois de centenas de outras fotos sozinha. É minha formatura e você passou uns dias antes reclamando da viagem que ia precisar fazer. Mas lá você sorriu um pouco e eu vi nos seus olhos que você se emocionou também. Nós ensaiamos a valsa na semana anterior e no dia você fez tudo certinho. Parecia orgulhoso, mas já naquela época eu tinha dúvida do quando de você havia ali. Você nunca foi um pai do tipo presente, mas aquilo ali era algo um pouco diferente.

Oito anos depois e chegamos aqui. Eu olho para você e te vejo nas ausências. Às vezes me pego olhando tão firme nos seus olhos, querendo me certificar que por trás desse castanho-claro dos seus olhos, desse tom de fogo que só você tem, eu vou te ver como eu via um dia, naquela lembrança da infância. Teve um dia em que eu estava com a nona, sentada com ela, sozinha, e parecia que eu estava sozinha mesmo ali. Foi a nossa despedida. Eu tentava falar com ela, insistia nas perguntas, inútil, porque ela não me respondia. Diziam que também ela não nos reconhecia. Mas teve um momento em que ela me olhou firme e por trás daquele verde-escuro dos olhos aquosos dela, tão parecidos com o meu que eu me via, eu a encontrei. Ela tocou minha bochecha com o indicador direito e sumiu de novo. A gente não tinha muitas coisas em comum, assim como não temos eu e você, mas vez e outra a gente se encontrava pelos cantos, nas esquinas. Como naquele meu desejo antigo e que você nunca conseguiu responder direito, de que você se cuide mais, de que você se ame mais, para que eu possa te amar por mais tempo também. Para você me dar mais chances da gente se acertar um dia. Eu sei que você sabe como é. É como quando a gente divide a panela de pinhão, “um pra você, dois pra mim”. O gosto enfarinhado do nosso fruto preferido. A gente não tinha muitas coisas em comum, mas vez e outra a gente se encontra pelos cantos, nas esquinas. Eu sei que no fundo você sabe que eu tenho medo de perder. De perder esse gosto que me vem à boca toda vez que eu falo ou penso – pinhão. Tenho medo de um dia não te encontrar nem mais na luz que de repente reflete no fundo dos seus olhos nos dias claros. Eu tenho medo de te perder no meio da sua loucura, de me perder no meio da sua loucura, de todos nós nos perdermos no meio da sua loucura. Uma vez sonhei com você, o sonho não foi bem esse, mas a sensação: era você, partido em pedaços, e eu juntando os cacos para te olhar e ainda conseguir me ver nos remendos que sobraram de você. A gente ainda continua sendo a gente depois de se partir em tantos pedaços?

quinta-feira, 25 de julho de 2019

Desacontecimentos

Eu nunca ficaria em uma casa por mais do que alguns anos, numa mudança sem fim. Para cada uma arrasto caixas que jamais abro, memórias que escapam do lacre e me assombram a noite. e um dia bato a porta e me vou para outra, com ainda mais caixas. De certo modo, sou uma moradora de rua com casas temporárias, carregando pela vida uma bagagem da qual não consigo ou não quero me livrar.
E talvez, nesse não lugar, entrecasas, eu tenha vivido na infância uma quase-morte. Literal, como fui, sou. Mais ainda antes das palavras. Ou talvez fosse apenas uma bactéria glutona e indiferente do jardim selvagem que me habitava, mas que eu desconhecia (p. 48).

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Hoje, ao lançar meus anzóis no lago nebuloso do passado, em busca de um mapa cujo único destino sou eu, percebo que escrever me salvou de tantas maneiras e também desta. Desde pequena eu tenho muita raiva - e quase nenhuma resignação. (...) Escrevo para não morrer, mas escrevo também para não matar (p. 61).

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Escolhi viver sem fronteiras definidas, noções não me interessam, limites só me importam os da ética. Tenho um coração andarilho, um corpo mutante, uma mente transgênera. Sou irmã, mãe, filha, homem, cúmplice, bicho bicho, bicho humano, árvore, erva daninha, pedra, rio. Sou palavra em palavras. Mas o meu corpo que viveu e que amou e que gozou e que foi marcado, este tem um lugar (p. 69).

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Como todos que se sabem frágeis, Lili ocultava sua delicadeza para que não a adivinhassem quebrável (p. 89).

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A escrita foi se tornando dolorida. Dizia de uma criança que chutava o cimento. Que se sentia encurralada. Que questionava a existência de Deus. Que sangrava com a desigualdade do mundo. Tão calada sobre o essencial, eu agora gritava. Naqueles dias não importava se era bom ou ruim o que eu escrevia. Importava transformar a dor em marca. Forjar um corpo para além do corpo, na letra (p. 113).

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Aos poucos percebi que só poderia me colocar diante do outro, de todos os outros, como eu era. Quebrada. Com toda a integridade das minhas fraturas, das quais finalmente fiz um vitral. Uma quebrada diante de quebrados, esse é o pacto em meus encontros públicos. (...) "Eu quase me desmancho". Quase. Minha força é, agora eu sei, saber-me quebrada (p. 125).


- Eliane Brum, in Meus desacontecimentos: a história da minha vida com as palavras, 2017.

quarta-feira, 26 de junho de 2019

Viajei, viajamos.

Essa não é a primeira vez que eu junto uma porção de coisas e saio por aí. Não foi a primeira e certamente não será a última. Às vezes a viagem é mais longa e tem mais bagagem, não tem prazo para acabar, é uma tentativa de recomeço em um outro lugar. Um novo rumo profissional, uma nova organização pessoal. Outras vezes, porém, essa viagem exige menos, só uma mochila cheinha nas costas, um mesmo tênis para uma semana inteira - no final da viagem ele já tá sabendo dos caminhos sozinho -, o mesmo casaco em todas as fotos, a mesma cara meio durona porque eu sei que sou uma mulher viajando sozinha e nem sempre as pessoas vão facilitar qualquer coisa para mim. Às vezes, no começo, parece que essa viagem é uma tentativa de por alguns dias não precisar falar com ninguém, ficar quieta, sozinha. Sei que você tem desses dias também. E tudo bem, porque a gente é um pouco assim, não é? Humano. Que se cansa de atingir metas, de responder expectativas, de ser legal com todo mundo o tempo todo, de sustentar sorrisos que nem sempre são muito sinceros, já que o dia a dia anda doendo. Às vezes a gente quer dar um tempo da vida mesmo continuando na vida, entende? Nessa viagem eu não sabia bem o que eu queria - era mais como uma promessa, algo que eu disse que faria antes de ir embora, mais uma vez. Foi Lourival quem me explicou, o guia turístico que se ofereceu para me contar a história da Praça Minas Gerais de Mariana, e para quem eu paguei pelo passeio muito menos do que o justo e do que gostaria de ter pago. No finalzinho de seu trabalho, quando nos despedíamos, ele me disse “espero que você encontre o que veio buscar”. Ah, Lourival, seu danadinho! Você me pegou, porque, afinal, o que tinha ido eu buscar no caminho do ouro de Minas Gerais?

Eu não sabia bem o que tinha ido buscar, mas achei que devia guardar aquela pergunta em algum cantinho do coração, para retomar depois. Para tentar, fazer um esforço, responder. E, não sei, talvez devesse começar perguntando: você já se sentiu uma pessoa destruída? Porque hoje eu me sinto uma mulher destruída - e preciso de ao menos um pouquinho de compreensão para que possamos continuar.

Mas eu não sou apenas uma mulher destruída. Eu sou uma mulher destruída que juntou seus pedaços pelo chão e que agora coloca uma mochila nas costas e os cacos nos braços e sai à busca de um porto para se reconstruir. Foi aí que entrou essa viagem, que teve uma coisa meio mística. Falei pouco e degustei muito do que as paisagens, climas e pessoas estavam me dizendo sem me dizer. Mas também não me recusei a qualquer coisa. Talvez a melhor parte de viajar sozinha seja que a gente está muito mais aberto ao que pode acontecer. Foi assim que em Ouro Preto eu conheci o Valter, em frente à Igreja de São Francisco Xavier. Ele tinha suas delicadas obras expostas na murada. Era segunda-feira, bem cedinho, um frio danado. Encolhida dentro do meu poncho peruano passo por ele e o cumprimento. Ele puxa assunto, fala das suas obras. Eu, me aproximo, dou atenção, porque eu sei como é ser artista e não sentir que as pessoas estão muito interessadas na única coisa que você acha que sabe fazer bem. Eu me aproximo, paro, escuto. Teço um comentário ou outro. Ali decidi que ia comprar algum souvenir religioso para a minha mãe - eu não tinha comprado nada nessa viagem, porque não era para levar nada dela além de memórias, e eu decidi ir em um momento financeiro bastante delicado também. Mas eu queria fazer aquilo pelo Valter e pelo trabalho dele. Eu acho que ele merecia. O problema foi que de novo eu senti que me saí melhor naquela nossa pequena relação do que ele. Ele me vendeu um lindo relógio com desenhos de Ouro Preto esculpido em pedra sabão - achei que ia ficar bem na cozinha da minha mãe, mais do que mais um santo, já que eu tinha dado outros de presente do México para ela. Mas, junto com o relógio, eu levei para casa um afago no coração. Valter disse que eu era daquelas pessoas que eram difíceis de aparecer, mas que de vez em quando aparecem. Simples desse jeito. Eu tive vontade de chorar. Mas engoli o choro e então lhe disse que esperava que a gente encontrasse gente que nos fizesse sentir assim com frequência, para que não deixássemos de acreditar na vida. Eu fui mais sincera com ele do que costumo ser com desconhecidos. E então lembrei de uma conversa com uma amiga na semana anterior, na qual eu dizia que gente menos “estudada” vivia melhor que nós, pseudo intelectuais, acadêmicos donos de um suposto saber, e complexificadores da vida. Eu percebo também que ultimamente eu tenho me sentido especialmente atraída pelas pessoas simples. Sem construções de discurso complicadas, cheias das sintaxes, das metáforas. Gente que diz o que quer dizer de forma direta, sem rodeios, mas com delicadeza. Gente assertiva, sabe? Eu não acho que sou mais uma pessoa assim. Esses dias me peguei dizendo em análise que havia trocado meu antigo blog de poesia-simples-existencial pela escrita para a academia, “esse escrever difícil porque não é mesmo para ninguém entender” (sic.). E é engraçado porque quanto menos eu acho que me aproximo da pessoa que eu gostaria ou me orgulharia de ser, mais eu invisto nisso. Mais eu me esforço - sim! Em ser quem eu não quero ser! Não é por ingenuidade. Eu faço análise, eu me penso, me coloco em cheque, me tiro com frequência da zona de conforto, me abro para experiências novas sem garantias de que serão prazeirosas. Eu lido também com o desprazer. Eu dou suporte para ele porque sei que é importante de ser vivido também, para que possa aprender mais sobre mim, entender os meus porquês. E no meio disso tudo, eu ainda acho que invisto muito em quem eu não quero ser? E se eu não largar desse osso porque na verdade é quem eu quero mesmo ser? Sei que é difícil de entender porque é também de se explicar. Nem sempre a gente é capaz de se explicar. Nem sempre a gente é tudo aquilo que sonhou pelos sonhos dos outros, justamente porque não eram nossos, eram dos outros - e só com muita dificuldade a gente entende que precisa entender isso. Mas, aos poucos a gente também vai aprendendo a se respeitar e a respeitar o tempo que precisa para aprender. Como me ensinou o Valter, a gente entende que às vezes a gente demora para se parecer de verdade com quem é, mas que mais cedo ou mais tarde esse eu de verdade aparece e é ao mesmo tempo a coisa mais bonita e a coisa mais simples que já se viu. E se não der para descobrir sozinho, tudo bem também, porque sempre tem alguém para ajudar. Além do Valter, dessa vez eu tive também uma amiga muito querida que várias vezes já foi meu pé no chão, quando eu voo alto demais e não consigo ou não quero voltar. Embora a ache tão jovem, essa menina tem uma sensibilidade do tamanho do mundo - deve ser a alma de artista - e me fez entender que dessa vez, enquanto eu me perdia entre as ladeiras de casas coloridas de São João Del-Rei, na verdade eu me encontrava - “talitarteando” por aí.

quarta-feira, 12 de junho de 2019

Seguir no caminho ou Todo dia um 7 a 1

De novo me perguntaram sobre como eu estou. De novo eu respondi com displicência. Que não é nada, que é cansaço. Que é só tédio, ou qualquer coisa assim. Me sinto perdendo o repertório das palavras. Será que, se eu parar de falar, vai levar muito tempo para perceberem? Afinal, sequer tem algo de novo nos silêncios. Não tem nada de novo na apatia. Eu sequer consigo chorar.

Hoje teve algo de novo porque havia um certo incômodo, uma ponta de ansiedade. Não aquela daqueles dias, mas tem algo mexendo, sabe? Tem algo tentando sair, e é bem quando eu acho que devia parar com a análise, dar um tempo, seguir sozinha, sabe? Essa resistência a mudar é sempre uma tentativa de boicote, de sair do lugar de quem não se responsabiliza pelo que sabe sobre si. Porque eu sei, mas queria não saber. Porque eu vejo e queria não ver. Eu me encontrei perdida nos meus silêncios e eu tive medo de me seguir.

Eu queria me rasgar, eu queria me jogar em um canto e desaparecer. Eu queria sumir - será que se eu ficar aqui quietinha de repente eu sumo? Eu queria gritar. Eu tenho vontade de correr e de gritar, faz dias. Eu queria me esquecer de quem eu sou - se eu me perguntar muito, como Clarice, eu esqueço? Queria ser menos forte, pra desistir mais cedo. Queria ter menos medo pra jogar mais alto e perder com mais intensidade - queria que fosse uma perda dessas, de 7x1, sabe? Dessas que não adianta mais fazer nada, a não ser não deixar piorar muito. Mas se está tão ruim, um a mais, um a menos, que diferença faz? A gente vai continuar - e até quando?