Me pediu nem que fosse dois dias para revirar o mercado a
fundo. Eu repliquei a sério que numa questão dessas, e na minha idade, cada
hora é um ano. P. 8
Nunca pensei na idade como se pensa numa goteira no teto que
indica a quantidade de vida que vai os restando. P. 12
Fazia meses que tinha previsto que minha crônica de
aniversário não seria o mesmo e martelado lamento pelos anos idos, mas o
contrário: uma glorificação da velhice. Comecei por me perguntar quando tomei
consciência de ser velho, e acho que foi pouco antes daquele dia. Aos quarenta
e dois anos havia acudido ao médico por causa de uma dor nas costas que em
estorvava para respirar. Ele não deu importância: é uma dor natural na sua
idade, falou.
- Então – disse eu -, o que não é natural é a minha idade.
O médico me deu um sorriso de lástima. Vejo que o senhor é
um filósofo, disse ele. Foi a primeira vez que pensei na minha idade em termos
de velhice, mas não tardei a esquecer o assunto. E me acostumei a despertar
cada dia com uma dor diferente que ia mudando de lugar e forma, à medida que
passavam os anos. Às vezes parecia ser uma garrotada da morte e no dia seguinte
se esfumava. Nessa época ouvi dizer que o primeiro sintoma da velhice é quando
a gente começa a se parecer com o próprio pai. (...) A verdade é que as
primeiras mudanças são tão lentas que mal se notam, e a gente continua se vendo
por dentro como sempre foi, mas de fora os outros reparam. P. 12
A secretárias levaram ao salão um bolo com noventa velas
acesas que fizeram com que eu enfrentasse pela primeira vez o número de meus
anos. P. 49
Descobri que minha obsessão por cada coisa em seu lugar,
cada assunto em seu tempo, cada palavra em seu estilo, não era o prêmio
merecido de uma mente em orem, mas, pelo contrário, todo um sistema de
simulação inventado por mim para ocultar a desordem da minha natureza. Descobri
que não sou disciplinado por virtude, e sim como reação contra a minha
negligência; que pareço generoso para encobrir minha mesquinhez, que me faço
passar por prudente quando na verdade sou desconfiado e sempre penso o pior,
que sou conciliador para não sucumbir às minhas cóleras reprimidas, que só sou
pontual para que ninguém saiba como pouco me importa o tempo alheio. Descobri,
enfim, que o amor não é um estado da alma e sim um signo do zodíaco. P. 74
A verdade é que eu não aguentava minha alma e começava a
tomar consciência da velhice pelas minhas fraquezas diante do amor. P 97
- Faça o que quiser, mas não perca essa criança – disse. –
não há pior desgraça que morrer sozinho. P. 110
No começo de julho senti a distância real da morte. Meu
coração perdeu o compasso e comecei a ver e a sentir por todos os lados os
presságios inequívocos do final. O mais
nítido foi um concerto no Belas-Artes. O ar-condicionado havia falhado (...) .
No final, com o Allegretto poco mosso, estremeceu-me a revelação deslumbrante
de que estava escutando o último concerto com que o destino me deparava antes
de morrer. Não senti dor nem medo, mas a emoção arrasadora de ter conseguido
viver até ali. P. 117-8.
Desde então comece a medir a vida não pelos anos, mas pelas
décadas. A dos cinquenta havia sido decisiva porque tomei consciência de que
quase todo mundo era mais moço do que eu. A os sessenta foi a mais intensa pela
suspeita de que já não me sobrava tempo para me enganar. A dos setenta foi
temível por uma certa possibilidade de que fosse a última. Ainda assim, quando
despertei vivo na primeira manhã de meus noventa anos na cama feliz de
Delgadina, me atravessou a ideia complacente de que a vida não fosse algo que
transcorre como o rio revolto de Heráclito, mas uma ocasião única de dar a
volta na grelha e continuar assando-se do outro lado por noventa anos a mais.
P. 119-120
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