domingo, 12 de julho de 2015

Processos de institucionalização e a mortificação do eu

Instituições de Longa Permanência para Idosos, as ILPIs, são locais destinados à assistência integral – diga-se, biopsicossocial – de pessoas com 60 anos de idade ou mais, que não possuem possibilidade de permanecerem com a família ou em seu domicílio, sejam dependentes (física/mentalmente) ou não. Com elas, o Estado busca garantir a manutenção dos direitos dos idosos, conforme suas necessidades coletivas e individuais, atendendo, em sua maioria, idosos com poucas condições financeiras. Sua emergência é uma tentativa de suprir as problemáticas inerentes ao aumento significativo do contingente de idosos no país, já que o fenômeno da longevidade avança a passos largos no Brasil.

Por outro lado, há outra preocupação que deve ser levado em conta: a qualidade dos serviços oferecidos por esses locais. Em termos psicossociais, diversas pesquisas têm apontado que a estrutura institucionalizada da ILPI reprime a expressão da subjetividade e da intersubjetividade de seus moradores, favorecendo que as identidades e as relações entre as pessoas se tornem cada vez mais empobrecidas. Isto se expressa nas normas que restringem não somente as saídas, mas padronizam a rotina institucional, portanto com pouco ou nenhum espaço para as peculiaridades de cada pessoa. Infelizmente, esta é a realidade de parte considerável das ILPIs de nosso país, principalmente em se tratando de instituições públicas e filantrópicas.

Com o apoio da psicanálise, aprofundamos ainda mais esta preocupação com o sujeito: para além do declínio físico, social e intelectual dos idosos, justificada pela deficiência de incentivos para manutenção de atividades que superem a rotina do local e a carência de profissionais; há uma relação entre institucionalização e perda de desejo, que traria como consequência a morte simbólica, ou seja, o esfacelamento do eu, antes da morte do corpo.

Norbert Elias trata da morte não apenas como fim efetivo da vida diante do adoecimento e do envelhecimento, mas como uma partida que muitas vezes começa muito antes. O sujeito começa a morrer quando é isolado, quando há o “gradual esfriamento de suas relações com as pessoas a que era afeiçoado, quando há uma separação dos seres humanos em geral, daquilo que dá sentido e segurança, situação muito comum em processos de institucionalização. Também Lacan e Messy apontam a morte de ordem simbólica como precursora da morte física: além da morte física, caracterizada pela decomposição da carne, há também a morte simbólica (psíquica e social), vivida com a exclusão da atividade produtiva e/ou reprodutiva – a exemplo a aposentadoria, e a entrada na menopausa no caso das mulheres – e com a perda de referências e desinvestimento no ego.

Seja qual for a forma com que falemos da morte, não fugimos de um ponto central: de uma forma ou de outra, ela inviabiliza a existência do sujeito. E em que a institucionalização favorece isto? Quando a rotina institucional é opressiva, quando estabelece que as normas e os horários fixos rígidos são a única forma encontrada para manter o funcionamento, mesmo que custem caro à subjetividade de seus moradores. É aí que o controle disciplinar age sobre o corpo e o coloca em relação com o gesto eficiente, o panóptico foucaultiano.

Com o tempo o sujeito se apaga. Suas marcas, suas identidades se esfacelam e evaporam. Com o passar dos meses e dos anos, sobressai o que Goffman chamou de mortificação do eu: a especificidade de subjetividade a ser seguida dentro da ILPI não permite investimento no desejo do eu sobre objetos significativos. Há uma falta que vai para além da falta estruturante do eu, trata-se de um isolamento que favorece o apagamento subjetivo, a morte simbólica. O dispositivo institucional promove a restrição de encontros, importante para a formação e manutenção de laços sociais significativos. “Envelhece-se”. Não um envelhecer do tempo cronológico, mas um envelhecimento no sentido de haver algo em seu olhar dizendo que aquele idoso não está ali há apenas alguns meses ou anos, mas muitos anos, talvez uma vida inteira. Os efeitos do poder institucional sobre estes sujeitos produzem então uma sobrevida, similar ao que Peter Pelbart percebe nos campos de concentração estudados por Giorgio Agamben. O mulçumano “era o morto-vivo, o homem-múmia, o homem-concha. Encurvado sobre si mesmo, esse ser bestificado e sem vontade tinha o olhar opaco, a expressão indiferente, a pele cinza pálida, fina e dura como papel, começando a descascar, a respiração lenta, a fala muito baixa, feita a um grande custo. (...) Exausto demais para compreender aquilo que o esperava em breve, a morte. Essa vida não humana já estava excessivamente esvaziada para que pudesse sequer sofrer (PELBART, 2006, s./p.)”.

Isto escapa à ordem de kronos. É um tempo que remete a kairós e, em pouco tempo, estes idosos adoecem e morrem, ou passam longos anos vivendo nessa sobrevida, que nada tem a ver com os anos cronológicos. A morte subjetiva e social impera e dá a ordem limítrofe que a separa da morte física: o corpo não aguenta mais. E o que é que este corpo não aguenta? “Ele não aguenta mais tudo o que o coage, por fora e por dentro. (...) Não aguenta mais a mutilação biopolítica, a intervenção biotecnológica, a modulação estética, a digitalização bioinformática do corpo, o entorpecimento” (PELBART, 2006, s/p.). O adestramento civilizatório, que impõe modos de ser ao corpo do sujeito contemporâneo. Persevera apenas silenciamento do corpo e a docilização impostos pelas disciplinas, pelas Instituições, pelos discursos do saber. O corpo morre quando não é mais capaz de aguentar a mortificação a que é submetido, fruto de práticas fascistas, práticas autoritárias e totalitárias de vigilância e disciplina. O corpo disciplinado em instituições controladoras morre quando perde a capacidade de ser afetado pelos acontecimentos do mundo, quando se torna blindado. Sob a ótica da psicanálise, poderíamos dizer que a mortificação do corpo seria sintoma da relação entre um corpo impenetrável e um Pai onipotente e que não dá tréguas – “um pai institucional”.

E o que fazer, então, quando a instituição de assistência, que é um direito do cidadão, se torna palavra de ordem e opressão que impossibilita a existência do sujeito?

Referências:

ELIAS, N. A solidão dos moribundos – seguido de “Envelhecer e morrer”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
FOUCAULT, M. História da loucura na Idade Clássica. 6ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 1999.
GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. 8. Ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.
MESSY, J. A pessoa idosa não existe. São Paulo: Aleph, 1993.
PELBART, P. Vida Nua, vida besta, uma vida. In: Revista Trópico. 2006. Disponível em: http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/2792,1.shl Acesso em: 26/05/2015

- Originalmente publicado em Obvious

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