Embora com frequência eu precise parar na Leopoldina para pegar ônibus quando venho de algum lugar do Rio para Niterói, hoje a sensação foi totalmente diferente. Costumeiramente eu preciso descer em um lado da pista e pegar outro ônibus nesse mesmo lado, às vezes apenas em outra pista. Hoje, porém, eu parei no lado contrário. Durante alguns segundos, parar no lado contrário de um lugar em que eu sempre paro me deixou completamente perdida. Eu simplesmente não conseguia me orientar. Eram as mesmas árvores, as mesmas passarelas, as banquinhas de pipocas e doces, os vendedores ambulantes, o mesmo cheiro de fritura no ar. Estava tudo igual, mas eu estava do lado contrário.
Disso, e depois de me orientar, atravessar a passarela toda e descer do outro lado; me ficou uma outra sensação, tão importante quanto: a gente se acostuma com as coisas. A gente se habitua tanto que qualquer mínima alteração em um dado curso causa estranhamento e desorientação. E mais do que isso – e isso sim é assustador – nos habituamos inclusive com as coisas que nos incomodam! Como conversava com uma pessoa querida ontem, como é perigoso quando, por vezes, nos deixamos satisfazer com a insatisfação. Temos um problema sério: perdemos a razão de ser/fazer/querer alguma e qualquer coisa. A vida vira rotina. O curso não é maravilhoso, mas tudo bem. Seu emprego está uma merda, mas tudo bem. Você não sabe por onde começar a organizar sua casa, mas tudo bem. Você ainda não sabe o que quer dos próximos anos de sua vida, mas tudo bem. Nesse ínterim nos submetemos a descasos, a maus tratos, a violências de todas as ordens.
Acostumar-se é um risco sério. Muitas vezes maquinizar o corpo é também maquinizar a alma e diante de cada passo perder a esperança de dias melhores. Acostumamo-nos com a corrupção, com o descaso com a saúde e a educação, com a violência urbana, com a impunidade política. Acostumamo-nos sem perceber que se acostumar é desrespeitar a vida que pulsa de forma única dentro de cada pessoa e que nos incita a dizer não quando não se quer dizer não e a dizer sim quando o desejo assim nos conduz.
Hoje, naqueles trinta segundos entre descer do ônibus, entender onde estava, onde precisava ir e como chegar lá, uma luz se acendeu bem em frente aos meus olhos e me mostrou que há muitos nãos querendo ser SIM e muitos sins querendo ser NÃO, e que eu não os estou ouvindo – eles batem em minha porta, mas eu, que estou do lado contrário não escuto. Há muitas insatisfações vivendo no peito e talvez sejam elas que volte e meia nos tiram o sono e enchem os olhos de lágrimas. Não, a insatisfação não pode simplesmente chegar aqui e se acomodar. Ela exige coragem para atravessar a rua pelo lado que você não conhece, exige paciência para acolher o que teme e, acima de tudo, exige autenticidade para “não se acomodar com o que incomoda”, para permitir se virar do lado contrário, revirar se preciso for, e se reinventar todos os dias.
- Originalmente publicado em Olhares e silêncio, Obvious.
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