quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Desabafo

Eu tinha uns quatro ou cinco anos e essa é a lembrança mais antiga que eu tenho de você. Estávamos nós dois naquela reta de asfalto, imensa, na frente da casa da nona. Você me levava até a metade do caminho, segurando a bicicleta, e depois me soltava. Incentivava para fazer a volta, mas eu sempre descia antes de virar. E você me esperava com aquela tranquilidade, que era igual à do meu avô, a parte calma da família, andar, pequenininha, a empurrar a bicicleta menor ainda, as pernas gordinhas. Você tinha tanta paciência, tanto tempo. E onde aquilo foi parar na adolescência, pai? Como chegamos àquele lugar dos relacionamentos difíceis? Tudo aquilo foi porque eu me pareço tanto com você? Tudo porque o que eu mais detesto em mim eu vejo em você? A gente só aprendeu a ser gente com a minha saída de casa. Parecia que você não concordava com nada do que eu queria para mim, mas foi você quem sempre investiu nos meus sonhos. Se você não quisesse mesmo eu nunca teria chegado onde estou. Primeiro a saída para a faculdade. Você falava sobre medicina e eu queria a psicologia. Eu nem tentei medicina e ainda assim você me levou, você se lembra? Eu nem sabia se ia conseguir entrar na segunda chamada da Universidade, mas nós saímos de casa as 5h da manhã, eu, você e a mãe. Aquelas 4 horas de viagem foi o maior tempo que eu tinha passado ao seu lado até então. E na saída você me abraçou, meio sem jeito, porque a gente não sabia direito como é que se fazia aquilo. E eu fiquei. Você sempre preocupado, se eu precisava de mais dinheiro. Sua preocupação sempre era com o dinheiro, mas suspeitava que era porque você não sabia como perguntar se eu estava bem de outro jeito... Eu lembro que aos 19 anos foi pra você e para a minha mãe que eu escrevi uma carta, nunca entregue e que continua na caixinha das lembranças, no dia em que eu tomei todos os comprimidos de dramin que eu tinha em casa para nunca mais acordar. Depois disso, eu lembro da nona morrendo. E das suas palavras duras no dia em que me pegou na rodoviária para irmos para o hospital: se fosse pra ficar velho “assim” você preferia morrer novo. Minha lágrima silenciosa escorrendo ao seu lado. E sua mão no meu ombro no velório dela, quando eu entrei na igreja e perdi o chão. Depois a faculdade acabou e eu voltei. Lembro do seu orgulho com meu primeiro emprego, um dia depois de terminar a graduação. Lembro do seu sorriso na minha formatura, aquele que está no álbum de formatura. Um dos poucos que eu vi você dar na vida. Então veio o seu diagnóstico: transtorno bipolar. E eu não fazia ideia do que isso ia significar na vida da nossa família. Eu nunca vou saber exatamente tudo o que aconteceu em casa, com você, minha mãe e o Tai, durante os anos em que estive na faculdade. Eu só lidava com seus altos e baixos nas férias. Eu só te achava um cara autoritário demais. Eu só achava minha mãe submissa demais. Eu só ficava com raiva de vocês dois. O tempo todo. Da vida que a gente levava. A graduação em psicologia não me ensinou nada sobre você. E depois veio o mestrado. A seleção inteira você torcendo contra. Mas eu sei que no dia em que saiu o resultado e eu fui aprovada, e não tinha mais ninguém em casa para sorrir comigo, foi você que eu abracei. Eu pulei da escada direto para os seus braços e você me disse: então você vai para o Rio de Janeiro. Sim, pai. Eu ia. E você, contrariado ou não, me apoiou. Você me ajudou a ficar o primeiro mês aqui, sem bolsa, nem um emprego. Você sorriu novamente quando eu liguei dizendo que tinha conseguido um trabalho. E passou os dois anos seguintes perguntando quanto que eu ganhava, querendo perguntar se eu estava precisando de alguma coisa. Eu ficava irritada, mas meu coração te entendia. Foram com esses quase 2 mil km de distância que eu entendi que amava você. Do nosso jeito, mas com todo o meu coração. Foi quando eu chorei como uma criança quando assisti a “Fathers and Daughters” e foi a partir daí que as sessões de análise começaram a se repetir: eu precisava te pedir desculpas por tudo, por sempre, e eu queria você por perto. Mais e mais e mais. Eu queria correr atrás do nosso tempo perdido. E eu me esforcei tanto. Mas nessas ultimas férias você acabou com as minhas energias. Isso, entre nós, acabou com as minhas forças. Eu queria ter ficado mais, mas eu não podia. Minha saúde mental não me permitia. A sua inconstância me deixou exausta. Foram os dias mais difíceis da minha vida. Mais que quando a nona não lembrava mais de mim e quando ela finalmente se foi. Mais que todos os transtornos que tantos anos de bulimia e anorexia puderam me trazer. O seu olhar aguardando que eu te respondesse o que você tinha, como isso foi acontecer contigo, e eu precisar de todas as minhas forças só para conter o choro acabaram comigo. Ouvir você me dizer para ficar quieta, para parar de falar, nos dizer que não somos uma família unida, que a gente só queria o seu dinheiro; quando eu, meu irmão e a mãe juntamos todas as forças que tínhamos para manter você bem e o mais longe possível de qualquer coisa que pudesse te machucar. Se você tivesse visto o desespero nos olhos da mãe no dia em que você se fechou no quarto e tiramos a janela para te tirar de lá, a preocupação dela porque "tudo estava em cima do guarda-roupas"... Pai, a gente chamou o SAMU. E a polícia. Naquele dia. Para te ajudar. Porque nós queríamos você bem. Nós queríamos VOCÊ de volta. E de lá para cá 31 dias se passaram. Eu só vejo você pelos relatos da minha mãe. Eu só falo com você pelos nossos recados trocados. Eu só sei que é você porque no dia em que falei com a mãe sobre a entrevista de um processo seletivo que eu quero tanto e que ela passou meu áudio para você ouvir ela disse que você tinha acabado de acordar e me ouvido e dito que era para eu seguir a minha vida apesar dos porquês. Para continuar com o meu caminho porque você tinha certeza de que eu me importava e que você ia ficar bem. Nesse dia eu sabia que era você. Nem que fosse só por aqueles 5 minutos, mas era você de novo. Era VOCÊ dos treinos na bicicleta em meados dos anos 90. Era você daquela foto do meu aniversário de 1 aninho, ao seu lado, sentada na sua moto. Naquelas palavras eu conseguia ver você. Mas você se perde tão facilmente entre as nuvens. Você me deixa, você deixa a todos nós aqui, sozinhos, perdidos, sem saber o que fazer para te ter de novo em casa, do seu jeito. Eu sinto a sua falta. Eu sinto saudades de você. E esse é o pior tipo de saudade, aquele que a gente sente de quem continua aqui.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

De vazio

De vazio, eu entendo. Começo a achar que não há nada a se fazer para preenchê-lo. Foi o que percebi com as sessões de terapia. Os buracos na sua vida são permanentes. É preciso crescer ao redor deles, como raízes de árvores ao redor do concreto: você se molda a partir das lacunas.

- Paula Hawkins, in A garota no trem, p. 114.

Sobre a tristeza

Mas acabei me tornando uma pessoa triste, e a tristeza cansa depois de um tempo, tanto para quem está triste como para todo mundo em volta.

- Paula Hawkins, in A garota no trem, p. 97-98.

Gritei.

Era uma recém-chegada. Pouco mais um mês que havia se mudado para a grande cidade e lhe fazem um convite para um festa. Foi de um cara que ela conheceu em uma reunião de colegiado da pós. Ele era aluno do doutorado. Encontraram-se pela primeira vez na segunda reunião de que participou. Ele sentou bem à sua frente e olhava muito, mas ela fingiu que não era com ela e deixou para lá. No entanto, quando saiu da sala o encontrou no corredor. Ele puxou assunto. Perguntou seu nome, se apresentou e perguntou se eu precisava de alguma coisa. Disse que ia rolar uma festa no final de semana e se ela não gostaria de ir? Achou gentil, não queria ser mal educada, ele pareceu solícito. Agradeceu e trocaram telefones.

Ele ligou no final da semana e a chamou para o sábado. Disse que era formatura de uma turma de alunos da pós em que ele dava aula e que seria legal, perguntou se ela não queria ir. Acabou aceitando. Ela estava sozinha, recém-chegada. Tudo novo. E queria conhecer a cidade. Combinaram que ele a esperaria na Praça e chegou logo depois dela. Sozinho. Foram caminhando, fizemos um tour pelo Rio antigo e ela adorou. Chegaram à Lapa e ele displicentemente disse que os alunos não puderam ir e o jantar foi desmarcado, mas que podíam aproveitar, de toda forma. Ela achou estranho, mas não reclamou, nem disse que queria voltar. Ele perguntou se estava com fome e comeram uma pizza. Logo em seguida foram a outro bar, um que ele queria lhe mostrar. 

Ele já tinha bebido uma cerveja, e pediu uma tequila. Ela recusei novamente. Ficaram um pouco e ela já queria ir embora. Ele pediu para ficar mais um pouco e em uma brincadeira lhe beijou. Ela ficou assustada, perguntou o que é que ele estava fazendo. Mais uma vez disse que queria ir embora. Ele quis ir em outro bar, disse que após ela escolher e eles beberem alguma coisa lá voltariam. Ela escolheu um qualquer e ele insistiu para que provasse aquela tequila. Ela bebeu uma dose. Duas doses. Foi o suficiente. Sentia-se tonta e acabou ficando com ele. Intenso demais. Bem mais do que gostaria e estava acostumada. Nisso já eram três horas da manhã. Trocaram o ponto de ônibus pelo táxi. O endereço não era o dela. Julgou ter sido o dele e apenas avisou ao motorista para ir à sua rua primeiro. Foi quando ele disse que queria ficar mais um pouco com ela. Ela recusei. Ele insistiu. Muito, muito, muito. Ela disse não, muitas vezes, mas cansou. Foi vencida pelo cansaço. Apenas lhe disse: você não vai me fazer fazer o que eu não quiser? Ele ficou ofendido. Foram para um motel. Ela se sentia mal – por ter ido e por achar que se tinha ido tinha que fazer o que é que fosse para ser feito.
Quando saíram, pela manhã, ela estava um lixo. Disse a si mesma que não queria mais vê-lo. 

Viveram uma relação intensa de dominação, vitimismo e opressão, que ela sequer queria. Ele queria que ela acreditasse que era a vítima e a bruxa má da história. Ele queria que ela acreditasse que era culpada. Ele queria que ela acreditasse que foi porque quis. Ele queria que ela acreditasse que foi porque não disse não mais vezes. Ele queria que ela acreditasse que foi porque tinha bebido um pouco. Ele queria que ela acreditasse que foi porque achava que ele estava sendo legal e ela precisava pagar por aquilo. Ele queria que ela acreditasse que foi porque era uma idiota. Ele tem o dobro da idade dela. Talvez mais. E ela tem medo de encontra-lo na rua. Teve medo de que ele fizesse alguma coisa. Teve medo que ele contasse para todo mundo. Ele era o segundo cara com quem ela dormia na vida. Não usou camisinha e nem tomava anticoncepcional. E teve que lidar com aquilo sozinha, porque ele queria que ela acreditasse que a culpa era toda dela. Que fez porque quis.


Mas nunca foi. 

Ela calou seu grito, por medo de estar sozinha e ser tachada de louca.