sábado, 9 de dezembro de 2017

Sobre parar a vida

(...) Agora tudo o que vejo é uma garota morrendo de medo de viver. Vejo as pessoas darem um empurrãozinho de vez em quando, mas nunca forte o suficiente, porque não querem contrariar a pobre Violet. Você precisa de um baita traco, não de um empurrãozinho. Você precisa retomar as rédeas. Ou vai ficar em cima do parapeito que construiu para si mesma para sempre.

- Por lugares incríveis, Jennifer Niven, p. 110.

domingo, 3 de dezembro de 2017

Fogo, fumaça e faíscas

Tive um sonho esses dias... Eu estava na casa onde moro hoje, com a minha tia, e nós estávamos na cozinha. Tinha um isqueiro em cima do fogão, bem ao alcance de uma chama do fogão. Eu gritava: "tia, tire, que vai explodir. Tire"! Mas parecia que ela não me ouvia. Continuava falando comigo e não ouvia, não via meu desespero diante daquela explosão que eu temia tanto que se aproximasse. E ela veio. Tinha fogo, fumaça e faíscas. Tinha coisas voando, calor. Explodiu.
No dia seguinte contei a ela. Perguntou por que eu não tirei?!

Alguns dia depois falei sobre isso com a minha terapeuta. Ela me perguntou se aquele isqueiro não era eu. Talvez fosse mesmo. Não era uma pergunta, mas uma afirmação com entonação. Explodi. Aqueci tanto que explodi. Demorou três dias. Quando veio, foi no calor das discussões, das tensões, dos estresses. Teve choro, raiva, palavras duras e expressões de fúria. Eu não parecia eu. Depois eu estava exausta. Já conhecia aquela sensação, de quem segura tanto que uma hora estoura pelas beiradas. Fogo, fumaça e faíscas.

terça-feira, 28 de novembro de 2017

Depois do furacão II



Li um texto há algum tempo, que dizia que todo mundo devia passar por um furacão, fazendo alusão ao caos do furacão Irma nos Estados Unidos e América Central. O texto dizia que "todo mundo devia passar por um furacão para, por fim, amanhecer em gratidão com o primeiro raio de sol, com um pato que invade o seu quintal, ou com o canto daquele passarinho que, por algum dos muitos milagres da natureza, também sobreviveu". Acho que esse furacão não é apenas literal. Não é só quando tem vento que queima, que manda casas, carros, animais, para os ares e destrói cidades inteiras com sua fúria. Há os outros furacões, tão intensos quanto, mas que passam por dentro da gente. Às vezes até tem um fato bem concreto que acontece e tira a vida da órbita, mexe com os eixos; mas nem sempre. Às vezes só dá um rodopio na cabeça mesmo. Faz um nó na vida da gente. O meu furacão foi esse ano. Um cara passou na minha frente achou que podia me matar para levar o meu celular. E foi o que ele tentou fazer, mas não conseguiu. Eu não morri. Fiquei lá, na calçada na frente da minha casa, sufocando no meu sangue, sob os gritos das minhas vizinhas. Me deixou com 20 dias de CTI e hospital. Me deixou com um monte de cortes no peito e no tórax. Me deixou com dor, e com morfina para passar a dor. Me deixou com o grito preso na garganta, porque por mais de três meses eu não consegui sentir nada sobre isso. Eu tinha uma dor bem intensa para cuidar. Me deixou com medo de todo mundo e da vida. Me deixou uma família assustada que, na tentativa de me proteger, me sufoca. Me deixou uma mudança forçada, que eu escolhe sem muito consentimento. Me deixou com dúvida. Me deixou com as consequências de não poder fazer nada sozinha por um tempo. Hoje me deixa também com raiva. Às vezes. Bem grande e intensa. Outras vezes é só tristeza. Tristeza pelas consequências que deixou, pelas marcas desse corpo que restou. Por meses eu me olhava no espelho sem olhar. Eu fazia curativos sem ver nada além das porções de cortes que eu precisava ver para cuidar, limpar, fechar. Porém faz um tempo que tenho me obrigado a olhar pelas primeiras vezes para meu corpo de inteiro, com tudo que significou: as cicatrizes, as medidas extras, o peso além do desejado, as celulites, a flacidez. Tudo isso que veio depois do furacão. Não é na hora que a gente sente os efeitos, sabe? Na hora é só uma loucura. Depois que o furacão passa, e que a gente precisa tirar os entulhos, limpar a casa, suturar as rachaduras; é nessa hora que a gente se dá conta do que é que se complicou.





terça-feira, 21 de novembro de 2017

Versos simples

Minha frase preferida sobre a força que o teatro exerce sobre mim é de Brecht. “Minha arte é meu sintoma”. É muito minha, porque soma vários elementos que compõem as minhas escolhas em apenas 5 palavras. Simples, direta, concisa. Tanto significado em meia linha escrita. E eu própria sou muito da escrita. Não me veio profissionalmente, porque dentre as ocupações, o corpo falou mais alto, sem a delicadeza da letra corrida que escorrega sobre o papel. Mas a escrita veio, principalmente para dar sentido à dor. Se os desenhos transformam a tristeza em poesia, a escrita transforma a dor em significante, cria significados.

Aprendi com o tempo a me escrever por meio de simples versos e complexos sonetos. Também comecei a me escrever nos longos textos, nos cadernos com os rabiscos, os rascunhos que ficam pelo blog. Em cada linha um mundo de sentimentos. Todos os meus sentidos.

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

A vida em montanha-russa

A vida virou uma imensa montanha russa de sentimentos. Primeiro pensei que uma boa metáfora fosse a roda gigante, mas a roda gigante é cíclica, anda por toda a vida pelo mesmos caminhos, embora encontre sempre seus altos e baixos. Montanha russa tem me representado melhor. É essa coisa que eu sinto que tem saído do lugar, sim, tem seguido adiante, caminhado em frente, com tanta luta e tanto aprendizado, mas que ao mesmo tempo tem seus altos e baixos. A vida virou essa inconstância, esse desejo pelo afastamento e pelo silêncio, pela solidão. Virou esse jogo de sombras, por meio do qual se consegue prêmios apenas depois de muitos erros e acertos, às vezes mais erros que acertos e mais do que a gente acha que pode suportar.

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Depois do furacão

Li um texto hoje que dizia que todo mundo devia passar por um furacão, fazendo alusão ao caos do furacão Irma nos Estados Unidos e América Central. O texto dizia que "todo mundo devia passar por um furacão para, por fim, amanhecer em gratidão com o primeiro raio de sol, com um pato que invade o seu quintal, ou com o canto daquele passarinho que, por algum dos muitos milagres da natureza, também sobreviveu". Acho que esse furacão não é apenas literal. Não é só quando tem vento que queima, que manda casas, carros, animais, para os ares e destrói cidades inteiras com sua fúria. Há os outros furacões, tão intensos quanto, mas que passam por dentro da gente. Às vezes até tem um fato bem concreto que acontece e tira a vida da órbita, mexe com os eixos; mas nem sempre. Às vezes só dá um rodopio na cabeça mesmo. Faz um nó na vida da gente. O meu furacão foi esse ano. Um cara passou na minha frente achou que podia me matar para levar o meu celular. E foi o que ele tentou fazer, mas não conseguiu. Eu não morri. Fiquei lá, na calçada na frente da minha casa, sufocando no meu sangue, sob os gritos das minhas vizinhas. Me deixou com 20 dias de CTI e hospital. Me deixou com um monte de cortes no peito e no tórax. Me deixou com dor e morfina para passar a dor. Me deixou com o grito preso na garganta, porque por mais de três meses eu não consegui sentir nada sobre isso. Eu tinha uma dor bem intensa para cuidar. Me deixou com medo de todo mundo e da vida. Me deixou uma família assustada que, na tentativa de me proteger, me sufoca. Me deixou uma mudança forçada, sem consentimento. Me deixou com dúvida. Me deixou com as consequências de não poder fazer nada sozinha por um tempo. Hoje me deixou também com raiva.
Me deixou com nojo desse corpo gordo que restou. Por meses eu me olhava no espelho sem olhar. Eu fazia curativos sem ver nada além das porções de cortes que eu precisava ver para cuidar, limpar, fechar. Porém ontem eu me obriguei a olhar pela primeira vez para meu corpo de inteiro, com tudo que significou: as cicatrizes, as medidas extras, o peso além do desejado, as celulites, a flacidez. Tudo isso que veio depois do furacão. Não é na hora que a gente sente os efeitos, sabe? Na hora é só uma loucura. Depois que o furacão passa, e que a gente precisa tirar os entulhos, limpar a casa, suturar as rachaduras; é nessa hora que a gente se dá conta de que perdeu muito.

sábado, 5 de agosto de 2017

"Tanto desencontro na vida"...

O fato é que: já chega de choro. Decidiu, decidiu. É uma coisa ou outra. Por que acha que você pode ser egoísta de ficar com todas as opções se todo mundo tem que escolher?! O duro é que a vida tem jogado muito rápido. Não tem dado muito tempo para você pensar antes de escolher. E o problema é você, que insiste em tomar as decisões mais sensatas, sendo que o mundo é pura insensatez. Essa sua cobrança toda por responsabilidade dentro de uma cabeça de menina tão levada não condizem, não podem existir em harmonia. Ou você confia em você e se entrega àquilo que te dá prazer, mesmo que seja um pouco complicado agora e pelos próximos anos, mas confiante num futuro confortável; ou você respeita a cobrança, assume o terninho e o sapato fechado e a tranquilidade que a vida te oferece hoje. São essas as suas opções. Mesmo que volta e meia você se diga que "nada disso estaria acontecendo se...", você sabe que essas dúvidas sempre estiveram presentes na sua vida, e você tem sido genial em equilibrar id (desejo) e superego (proibição) e deixar o ego confortável. Mas nem sempre vai ser possível e esses tempos difíceis chegaram. É claro que tem uma coisa que talvez as pessoas não consigam entender e talvez não sejam capaz de se perguntar, que é o quanto tem sido difícil para você ter sobrevivido àquilo também - com todas as intercorrências que significou. Não dá mais para se proteger da vida, entende? Ou se joga ou fica em casa e fecha a porta. As duas opções não cabem mais. São como essas roupas que você está tirando do guarda-roupas, se desfazendo, dando para um desconhecido qualquer. Não cabem na sua vida, como ela está por vir. Não se usa vestido longo florido lá, assim como você aprendeu que os coturnos de cadarço não combinavam com a orla e o calçadão. Vai ser fácil? Não vai. Você se lembra de como foi difícil ser a recém chegada de três anos atrás... Tudo lindo, azul, quente, populoso. E você se sentia sozinha na multidão. Agora as coisas mudam de figura, mas nem tanto. São as mesmas coisas, mas diferentes, invertidas. E de ontem para hoje, parece que o lado avesso não é mais o seu lado certo, que você precisa voltar para seu lado "certo", que todos viam antes dessas mudanças todas, no seu perfil "ativista de sofá", da rebeldia velada. Você continua sendo a menina exemplar, que supera todas as expectativas, mas que se rebela colocando piercing e fazendo tatuagem - onde ninguém vê. Percebe? O duro é que deixa todo mundo acreditar mais em você do que você mesma acredita. Você continua seguindo as expectativas, mesmo quando se acha muito esperta e de opinião própria. Segue a maré. Porque de remar contra a corrente já está cansada. Se faz a mesma pergunta: faz o que faz por coragem ou medo? Talvez as duas coisas. Cada uma pelos seus próprios motivos. Dizem por aí que a felicidade está onde está o medo. Você assume "o risco da vida invadir a contramão"?

sábado, 8 de julho de 2017

Metamorfoseiamos

Metamorfoses... Acontecem sempre de repente - e, embora não pareça, somos nós, seres humanos, aqueles que passam por metamorfoses com mais facilidade. É que nossa casca, diferente da casca dos animais, é feita de símbolos. Como diz o Evangelho, o verbo se faz carne. Assim, basta que as palavras se alterem para que o corpo se metamorfoseie num outro.
Símbolos são o desejo transformado em imagem. Avida são os símbolos se esforçando para dar forma ao corpo. A beleza de uma pessoa, no sentido mais espiritual, não se encontra no corpo. Ela se encontra na coreografia do corpo que dança a dança do símbolo que o possui.
Mas há um momento em que os símbolos envelhecem e o corpo se tornam cascas vazias. Vazia porque o canto que a vida cantava chegou ao final. Quando a orquestra termina de tocar a sinfonia, fecham-se as partituras e os instrumentos fazem silêncio, para que uma nova partitura possa ser aberta.

- Rubem Alves, in Cantos do Pássaro Encantado: sobre o nascimento, a morte e a ressurreição do amor, p. 126-7.

segunda-feira, 3 de julho de 2017

Reaprender

Hoje voltei à vida comum depois de um pouco mais de 4 meses de uma rotina totalmente atípica. Foi no meu ritmo, respeitando o meu tempo, me esforçando para me exigir o mínimo possível, para não me cobrar, para ter calma, para chorar mesmo, para respeitar a vida e essa menina aqui de dentro que sempre supera as coisas rápido demais. Fomos com calma, esses meses todos. É claro que tinha uma vontade gigante de tornar a vida o mais rápido e perto possível do que ela foi até fevereiro deste ano uma realidade de novo, mas eu me segurei. Respirei fundo e me apeguei a isso que a Claudia e a Ju sempre me fazem lembrar: “um dia de cada vez. Foi ontem”. Quatro meses se passaram e hoje que eu tô voltando para o trabalho. E eu ainda não voltei para a academia (é sério, eu tô aguentando haha) e ainda não tô pegando meu tênis e correndo pelas orlas aí, hein. Eu tô respeitando esse tempo, gente!, porque reconheço que é importante. De verdade. E eu tô reaprendendo a ser Talita. Hoje tô reaprendendo os caminhos de chegar ao trabalho, categoria que vocês sabem, acho tão importante na vida de qualquer pessoa, quem dirá na minha. Tô aprendendo a cuidar de um cabelo curto e cheio de cachos. Tô aprendendo a recortar com maestria, bem fininhos, os pedacinhos de Drenison para colar em cima das cicatrizes, naqueles 10 minutos de muita concentração e paciência que eu preciso disponibilizar todos os dias. Tô aprendendo a pegar, pendurar, guardar, ..., as coisas, sem esticar nem dobrar muito o tórax. Aprendendo a andar de ônibus de novo, a sair pelas ruas sozinha, a enfrentar o medo de morador de rua, de rua escura, de rua deserta. Tô aprendendo a manter o foco do pensamento no texto que eu estiver lento ou na conversa que eu estiver tendo. Tô aprendendo a não ver “ele” em todos os rostos de um certo perfil que eu encontro pela frente. Tô aprendendo de novo a alimentar meu corpo conforme as necessidades dele e não as da minha mente ansiosa. Tô aprendendo a lidar com o medo, o pânico, a ansiedade e o perdão, com a compreensão, aprendendo a responder que “sim, fiz cirurgia do coração, e que sim, pois é, tão novinha” para um estranho curioso que fica ao meu lado na fila do banco e para quem eu não quero dar qualquer satisfação.


Eu tô aprendendo essas coisas mais complicadas, do mesmo jeito que eu precisei reaprender a respirar, a comer e a andar, ainda quando estava no hospital - reaprender a andar é uma coisa louca, sério! E tô aprendendo um monte de coisa nova também! Por exemplo, que ser corajosa nem sempre é uma escolha, porque às vezes é a única opção que você tem, e que para sustentar as coisas que a gente quer e acredita será preciso bater o pé, brigar, e decepcionar algumas pessoas que a gente ama muito também. E tô aprendendo que sim, dá para escrever esse texto na minha cabeça, nos quinze minutos que dão da minha casa até o trabalho, que eu tô voltando hoje; e que dá sim, também, para compartilhar ele e mostrar que essas fragilidades todas estão aí, como já estiveram antes, em outros momentos, em outras circunstâncias, e que provavelmente vão voltar em algum outro momento da vida, mas que é porque sempre se tem alguém para cuidar, ajudar e amar. Queria compartilhar isso com vocês, porque é importante pra mim. É recomeço e também é continuidade, sabem? São as marcas que eu escolho escrever nesse corpo, além daquelas que a vida se encarregou de inscrever e que mais cedo ou mais tarde eu vou ter que aceitar – é tipo a minha próxima tatuagem, alguma coisa tipo “Life goes on”, porque “There was too much fight here” eu já fiz.

domingo, 2 de julho de 2017

Sobre querer ficar só

Porque eu amo quando estou com ele. Mas odeio quando fico na expectativa de encontra-lo, odeio quando ele me quer pelo Whatsapp. Perdi as certezas. Queria muito e agora já não sei se quero mais. Queria muito porque o tempo tem passado e cobrado seu preço, e eu vou me sentindo sem expectativas, então querendo construir alguma coisa mais sólida para vida, sobre futuro, sobre casa, família, algo além de estudo e trabalho. Aniversário chegando e eu vou ficar oficialmente mais perto dos 30 do que dos 20 - eis o porque de eu não comemorar os aniversários. Mas a verdade é que o primeiro impulso, menos consciente, sempre é para ficar sozinha, para fazer o que eu quiser, o que me fizer feliz. Aí eu me pego pensando assim e na hora luto contra isso, me digo que não, que eu tenho que tentar mais, que eu quero ser uma pessoa melhor. E que essa pessoa melhor é mais tolerante com os outros, é mais sociável, é mais presente na vida dos outros. E o que eu faço se eu desligo o som do celular quando alguém liga, se eu fecho a porta do quarto quando alguém chega, se eu não tenho vontade de sair para ver pessoas quase nunca?
Isso de estar com alguém parece que virou tristeza antes mesmo de ser feliz, feriu, e agora já é cicatriz, dura, que eu não vou conseguir mudar, cansada de correr e sem conseguir chegar. Então me afasto, vou pra longe, mas longe não tenho como ficar, porque volto no esforço sobre-humano que eu acho que tenho que fazer para ser uma pessoa melhor. Do contrário, esses anos todos de terapia não valeram de nada.

Me peço com frequência para não colocar tudo a perder, mas eu vou criando caminhos para que me digam que comigo, assim, não dá pra viver e aí então tudo bem, porque quem escolheu se afastar foi ele e não eu. Tem sido sempre assim. Eles insistem e eu encontro motivos para dizer que tenho razão em nunca mais querer vê-los pelo meu caminho. Bloqueio, excluo - do Facebook, do Whatsapp, da vida. Antes mesmo de começar eu já deixo tudo pra depois. Cada dia me convenço mais de que isso não é pra mim. De que não vai ser nunca.

quinta-feira, 29 de junho de 2017

O sonho de Sophie

Sophie: O que é o sonho de Sophie?
Giant: Um Phizzaward dourado. Eu não tinha visto ele há um bom tempo.
Sophie: Mas o que ele diz?
Giant: Conta a história de uma menina, com uma vida como a sua, família e amigos. Crianças pequenas também, eu diria... Um dia ela terá grandes sucessos e momentos engraçados. Para dizer a verdade, às vezes ela se desespera. Há tempos difíceis e tempos de tranquilidade. As aventuras vêm e vão, e no fim, ela relembra das coisas boas. E agora, Sophie, você sabe. Essa história e o desejo do seu coração. Eu sei. Foi esse sonho que você teve, não é?
Shophie: Mas então eu acordei. Mas não aqui.

Giant: Não, você tem mais sonhos para perseguir, minha pequena corredora.

In The BFG (2016).

terça-feira, 13 de junho de 2017

Tantas mortes existem

Eu quero o risco, não digo. Nem que seja a morte.

Cachorro sem dono, contaminação. Sagüi no ombro, sarna. Até quando esses remendos inventados resistirão à peste que se infiltra pelos rombos do nosso encontro? Como se lutássemos — só nós dois, sós os dois, sóis os dois — contra dois mil anos amontoados de mentiras e misérias, assassinatos e proibições. Dois mil anos de lama, meu amigo. Esse lixo atapetando as ruas que suportam nossos passos que nunca tiveram aonde ir.

Chega em mim sem medo, toca no meu ombro, olha nos meus olhos, como nas canções do rádio. Depois me diz: — “Vamos embora para um lugar limpo. Deixe tudo como está. Feche as portas, não pague as contas nem conte a ninguém. Nada mais importa. Agora você me tem, agora eu tenho você. Nada mais importa. O resto? Ah, o resto são os restos. E não importam”. Mas seus livros, seus discos, quero perguntar, seus versos de rima rica? Mas meus livros, meus discos, meus versos de rima pobre? Não importa, não importa. Largue tudo. Venha comigo para qualquer outro lugar. Triunfo, Tenerife, Paramaribo, Yokohama. Agora, já. Peço e peço e não digo nada mas peço e peço diga, diga já, diga agora, diga assim. Você não diz nada. Você não me vê por trás do meu olho que vê. Você não me escuta por trás da minha boca que pede sem dizer, e eu bem sei. Você planeja partir para um país distante, sem mim, de onde muitos anos depois receberei a carta de um desconhecido com nome impronunciável anunciando a sua morte. Foi em abril, dirá, abril ou maio. Ou setembro, outubro. Os mais cruéis dos meses. Tanto faz, já não importará depois de tanto tempo, numa cidade remota.

Tantas mortes, não existem mais dedos nas mãos e nos pés para contar os que se foram. Viver agora, tarefa dura. De cada dia arrancar das coisas, com as unhas, uma modesta alegria; em cada noite descobrir um motivo razoável para acordar amanhã. Mas o poço não tem fundo, persiste sempre por trás, as cobras no fundo enleadas nas lanças. Por favor, não me empurre de volta ao sem volta de mim, há muito tempo estava acostumado a apenas consumir pessoas como se consome cigarros, a gente fuma, esmaga a ponta no cinzeiro, depois vira na privada, puxa a descarga, pronto, acabou. Desculpe, mas foi só mais um engano? e quantos mais ainda restam na palma da minha mão? Ah, me socorre que hoje não quero fechar a porta com esta fome na boca, beber um copo de leite, molhar plantas, jogar fora jornais, tirar o pó de livros, arrumar discos, olhar paredes, ligar-desligar a tevê, ouvir Mozart para não gritar e procurar teu cheiro outra vez no mais escondido do meu corpo, acender velas, saliva tua de ontem guardada na minha boca, trocar lençóis, fazer a cama, procurar a mancha da esperma tua nos lençóis usados, agora está feito e foda-se, nada vale a pena, puxar as cobertas, cobrir a cabeça, tudo vale a pena se a alma, você sabe, mas alma existe mesmo? e quem garante? e quem se importa? apagar a luz e mergulhar de olhos fechados no quente fundo da curva do teu ombro, tanto frio, naufragar outra vez em tua boca, reinventar no escuro teu corpo moço de homem apertado contra meu corpo de homem moço também, apalpar as virilhas, o pescoço, sem entender, sem conseguir chorar, abandonado, apavorado, mastigando maldições, dúbios indícios, sinistros augúrios, e amanhã não desisto: te procuro em outro corpo, juro que um dia eu encontro.

Não temos culpa, tentei. Tentamos.

- Caio Fernando Abreu, in Anotações sobre um amor urbano, Morangos Mofados.

quinta-feira, 8 de junho de 2017

É isto um homem?

Cedo ou tarde, na vida, cada um de nós se dá conta de que a felicidade completa é irrealizável; poucos, porém, atentam para a reflexão oposta: que também é irrealizável a infelicidade completa. Os motivos que se opõem à realização de ambos os estados-limite são da mesma natureza; eles vêm de nossa condição humana, que é contra qualquer “infinito” (p. 15).


Mas que cada um reflita sobre o significado que se encerra mesmo em nossos pequenos hábitos de todos os dias, em todos esses objetos nossos, que até o mendigo mais humilde possui: um lenço, uma velha carta, a fotografia de um ser amado. Essas coisas fazem parte de nós, são algo como os órgãos de nosso corpo; em nosso mundo é inconcebível pensar em perde-las, já que logo acharíamos outros objetos para substituir os velhos, outros que são nossos porque conservam e reavivam as nossas lembranças (p. 25).


In: LEVI, Primo. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988.

Carta aos que sobrevivem

É como se fosse um novo tempo. Tem uma de você antes daquilo. E tem outra depois. E tem aquilo que ficou ali no meio. Aqueles dias. Não dá para saber muito bem quantos foram, porque essa linha entre o antes e depois não é nítida. É alguma coisa que, de algum jeito que não é possível explicar muito bem, separa os tempos. E, às vezes, parece que alguma coisa de dentro de você ficou nesse tempo limítrofe, perdido e vazio. Vazio também ficou o seu espaço nesse presente-futuro. O futuro daquilo, e o seu presente, esquecido, distante e se distanciando cada dia mais. Conversávamos uma noite dessas... “Sobreviver a isso é pior do que foi todo o resto” e ela disse que “não, não pode ser”. Ela, a mesma pessoa que disse que eu talvez não tenha ainda a dimensão exata do que aconteceu. Não tenho. Dessa história só é possível me apropriar aos poucos. Na nossa história eu só posso ser uns poucos momentos de loucura diante de tanta lucidez. Antes não soubesse e não tivesse consciência de nada, mas me era claro como água. Os rostos – todos eles. Todos rodando infinitamente como não havia outro jeito de ser. Todos acima, em cima. Por semanas, eu só vi rostos rodando, e luzes, e salas brancas. E eu engoli o choro por tantas vezes que eu não podia mais contar. Nenhuma lágrima. Sabe o que é isso? Nenhuma. A primeira caiu tanto tempo depois, por uma besteira, que nem tinha sido por minha falta. Mesmo assim me desculpei, porque no dia anterior não tinha conseguido insistir, mesmo sabendo que tinha razão. Acho que bem no fundo, é porque a gente se sente um pouco responsável. Como se fosse alguma coisa que você pudesse prever. Só que não era, mesmo. Não tinha como ser. E por isso tanta luta entre essas duas sensações tão fortes dentro de si: a que lhe culpa e a que lhe perdoa – as duas dizem que você não se importava mais e por isso mereceu. Mas como isso é contraditório, não é? Porque você lutou tanto naquela noite. Você ainda se lembra, com tanta clareza, de quando viu sangue escorrendo pelo seu braço, sem saber se era seu, e depois a falta de ar e aquela voz de um estranho que você nunca soube que rosto tinha, falando com você, e você dizendo que não podia respirar. Pensando que não queria morrer - não assim, ali naquela calçada. Ou depois, numa sala branca com outras pessoas das quais você só lembra das vozes mexendo no seu corpo sem você conseguir expressar qualquer reação. Sua força só surgiu dessa fraqueza: você não queria morrer. Então, por que agora parece que não consegue viver? O que lhe permitiria continuar a insistir depois da vida ser lançada na contramão? É como naquele texto do Primo Levi*... “Como passar por isso e seguir a vida sem se debruçar pela escrita numa tentativa desesperada de elaborar o trauma e se livrar da culpa de ter sobrevivido?”. Sim, porque teve aquele menino, três dias depois de você, não? Ou aquela moça que passou no jornal na semana passada. E mais todos aqueles outros que lidaram com alguma mudança brusca de percurso antes de ti... Mas esqueça isso. E ainda assim vai ficar uma outra certeza. A de que eles não acreditavam em você. Aquelas primeiras pessoas, naquela noite, nenhuma delas acreditava em você. Faz parte também da sua culpa saber disso, que contrariou a todos. Na semana seguinte eles disseram: que bom ver você aqui [porque não achamos que a veríamos novamente] – era essa segunda parte que eles não queriam dizer, e que não precisavam, porque você sabia. Os sorrisos, sim, tão gentis e simpáticos, que a acolheram tão bem do início ao fim, aqueles sorrisos tinham um alívio, você conseguia ver, mas diziam que você não ia sobreviver.

E ainda assim, você suportou todos aqueles dias, com todas as suas implicações, e depois foi para casa. E nunca sentiu tanto amor. De todo mundo. Todos foram lhe visitar, levaram flores e chocolates, levaram histórias bonitas e abraços de afago, viajaram muitos quilômetros, ligaram, mandaram mensagens. Tanto amor que, às vezes, parece que você vai sufocar – oferecem um colar de joias com o qual, mais cedo ou mais tarde, você pode se enforcar. Tanta preocupação ultrapassando os limites do que você é capaz de receber e aceitar. Eles lhe ajudaram e então todos, todos nós, juntos, seguimos, lindinha. Seguimos. Seguiremos sempre. Até onde lhe for possível. Com todas as mudanças, rompimentos e lutos que você teve e ainda vai ter que elaborar. Do seu cabelo comprido, do seu corpo definido e da pele lisinha que até então só tinha as marcas que você tinha escolhido desenhar, da menina destemida que trocava histórias com mendigos e meninos de rua, da moça que comprou só Deus sabe quantos lanches para desconhecidos famintos, da garota que sorria simples e conversava com todo mundo. Não é mais você. Ela se foi. Ela faz parte daquele velho tempo da linha tênue que existe entre o antes e o depois, faz parte daquelas coisas, pensamentos, sensações, que ficaram nesse tempo limítrofe, perdido e vazio.

Quanto disso você vai conseguir recuperar?

* LEVI, Primo. É isto um homem? 

segunda-feira, 5 de junho de 2017

Sobreviventes

Não que fosse amor de menos, você dizia depois, ao contrário, era amor demais, você acreditava mesmo nisso?


[...] ando angustiada demais, meu amigo, palavrinha antiga essa, angústia, duas décadas de convívio cotidiano, mas ando, ando, tenho uma coisa apertada aqui no meu peito, um sufoco, uma sede, um peso, não me venha com essas história de atraiçoamos-todos-os-nossos-ideais, nunca tive porra de ideal nenhum, só queria era salvar a minha, veja só que coisa mais individualista elitista, capitalista, só queria ser feliz, cara.


Já li tudo, cara, já tentei macrobiótica psicanálise drogas acupuntura suicídio ioga dança natação Cooper astrologia patins marxismo candomblé boate gay ecologia, sobrou só esse nó no peito, agora o que faço?


[...] claro que deve haver alguma espécie de dignidade nisso tudo, a questão é onde, não nesta cidade escura, não neste planeta podre e pobre, dentro de mim? Ora não me venhas com autoconhecimentos-redentores, já sei tudo de mim, tomei mais de cinqüenta ácidos fiz seis anos de análise, já pirei de clínica, lembra? você me levava maçãs argentinas e fotonovelas italianas, Rossana Galli, Franco Andrei, Michela Roc, Sandro Moretti, eu te olhava entupida de mandrix e babava soluçando perdi minha alegria, anoiteci.

As pessoas se transformavam em cadáveres decompostos à minha frente, minha pele era triste e suja, as noites não terminavam nunca, ninguém me tocava, mas eu reagi, despirei, e cadê a causa, cadê a luta, cadê o potencial criativo? Mato, não mato, atordoo minha sede com sapatinhos do Ferro’s Bar ou encho a cara sozinha aos sábados esperando o telefone tocar, e nunca toca.


Mas eu quero dizer, e ela me corta mansa, claro que você não tem culpa, coração, caímos exatamente na mesma ratoeira, a única diferença é que você pensa que pode escapar, eu quero chafurdar na dor deste ferro enfiado fundo na minha garganta seca.


[...] não vou tomar nenhuma medida drástica, a não ser continuar, tem coisa mais destrutiva que insistir sem fé nenhuma?


[...] que aconteça alguma coisa bem bonita para você, te desejo uma fé enorme, em qualquer coisa, não importa o quê, como aquela fé que a gente teve um dia, me deseja também uma coisa bem bonita, uma coisa qualquer maravilhosa, que me faça acreditar em tudo de novo, que nos faça acreditar em todos de novo, que leve para longe da minha boca esse gosto podre de fracasso, de derrota sem nobreza, não tem jeito, companheiro, nos perdemos no meio da estrada e nunca tivemos mapa algum, ninguém dá mais carona e a noite já vem chegando.

Por Caio Ferando Abreu, in Morangos Mofados.

sábado, 3 de junho de 2017

Sobre ter a alma gordinha...




Aos 9 anos minha mãe me colocou para brincar de ser atriz. "Vai, experimenta, faz a primeira peça. Se você não gostar, depois sai". Tudo lá em casa era negociado assim. Algumas coisas eu entrava, fazia um tempo, saía. Do teatro nunca saí. Outras crianças saíram, minha mãe saiu, as aulas acabaram, o grupo também. Escolhi as aulas, mudei de cidade, entrei para outro grupo, o grupo acabou, criei um onde não existia. Deixei de lado para assumir outras responsabilidades, mas voltei. E chegou 2017 me dando uma chance de me dizer sim para viver de teatro, e antes de ter certeza de que era um sim, eu disse não. Talvez se fosse antes, talvez em outros tempos, talvez mais para frente. E quantas surpresas nos reservou esse 2017?! Pois é... Mas hoje é não. Talvez lentamente e dia a dia vá morrendo em mim o teatro a partir desse "não". Escolhi outras coisas. Talvez em outros tempos nos reencontremos para resolver mais alguma coisa dessa relação de amor-e-ódio que há entre a gente. Até mesmo o teatro pode morrer em mim algum dia e mesmo nunca mais voltar, mas não a atriz. Ah, essa é dura, não morre nunca. Sobrevive pelo meio das minhas outras profissões e ocupações. Sobrevive na psicóloga e na professora, sobrevive no jeito de olhar o mundo, as pessoas, a vida. Por ser artista é que me dou a possibilidade de ser médica, engenheira, bailarina e advogada. Me permito ser todas as escolhas que deixei para trás. Porque "a gente não se contenta com pouco. Tem alma gordinha".

quarta-feira, 10 de maio de 2017

Sobre um lugar para a dor

Talvez o tempo não curasse as feridas, exatamente, mas criasse uma espécie de armadura, ou uma nova perspectiva. Uma forma de lembrar com um sorriso, e não com um soluço.

Em um mar de lamentação, havia ilhas de bençãos, instantes no tempo que nos lembravam do que anda tínhamos, em vez de tudo o que tínhamos perdido.

- Kristin Hannah, in O Caminho para Casa, p. 248; 351.

segunda-feira, 8 de maio de 2017

Sobre a resiliência

O que desejo é libertar
todas as minhas fraquezas,
chorar até que acabe o fôlego,
dormir até que os dias melhorem,
afogar-me em toda a piedade gratuita,
pedir todo o carinho e os abraços que me faltam,
tornar-me a vítima que tenho todo o direito de assumir.
Mas desejar nem sempre é poder, ou permitir,
então engulo o desânimo e a dor
e sigo a encarar, todos os dias,
todas as pessoas que sempre
só perceberão o que te falta,
sem tempo para entender
as dificuldades
do que
te cabe.
Assim sigo,
independente
de como me sinto,
arrastando os
dias como posso,
regatando sonhos,
tentando acreditar
que as coisas boas vão sim
perdurar, enquanto durar
este pequeno intervalo,
criado por novos anos
que tão logo acabam,
e que aprendemos
a chamar de vida.

In: http://lounge.obviousmag.org/insolito/2014/12/sobre-a-resiliencia.html

segunda-feira, 24 de abril de 2017

Sobre isso, que não tem nome, que viola o real do corpo

- O bom é que você é psicóloga. Ajuda a passar por isso, não é?
- Não. Não ajuda. São muitas coisas envolvidas.
- É muita invasão, não é? O pior tipo de violação.

13/04/2017

Sobre ter tudo e não ser nada

Meg tinha tudo. Toda aquela inteligência. Uma bolsa de estudos para uma boa faculdade. Tinha até esse computador caro que você não consegue largar. – Ela volta a me encarar. – Você só tinha a mim. E é inteligente, não me entenda mal, mas não como Meg. Ficou limitada a uma porcaria de faculdade comunitária. (...) O que quero dizer é: você nunca desistiu, nem da dança, nem da matemática, nem em nada, e talvez tivesse mais motivos para isso [suicidar-se]. Você tinha um monte de pedras nas mãos, então resolveu limpá-las, deixá-las bonitas e fez um colar. Meg ganhou um colar de joias e se enforcou com ele.

- Gayle Forman, in Eu estive aqui, p. 124-5.

Tateando às cegas

A vida pode ser difícil, bonita e caótica, mas, cm um pouco de sorte, a sua será longa. Se for, você verá que é também imprevisível e que há momentos de escuridão. Mas eles passam, às vezes graças a muito apoio externo, e o túnel se alarga, permitindo que os raios entrem. Se você estiver na escuridão, pode parece que vai continuar nela para sempre. Tateando às cegas. Sozinho. Mas não vai - e não está sozinho. Há muitas pessoas dispostas a ajudá-lo a voltar à luz.

- Gayle Forman, in Eu estive aqui, p. 228.

quinta-feira, 20 de abril de 2017

Sobre perder o fio da meada

Conhece a expressão "perder o fio da meada"? Então, é isso. Na vida real, a maioria de nós não faz muita ideia de onde a nossa vida vai. Podemos achar que sabemos, mas aí alguma coisa aleatória acontece e de repente você está em outra narrativa.

Sita Brahmachari, in Corações de Alcachofra, p. 253

segunda-feira, 17 de abril de 2017

Como onda

Durante um só dia tudo fica claro e tudo fica escuro e de novo tudo claro. O que é preciso é não ir demais contra a onda. A gente faz como quando toma banho de mar: procura subir e descer com a onda. Isso é uma forma de lutar: esperar, ter paciência, perdoar, amar os outros. E cada dia aperfeiçoar o dia.
 
- Clarice Lispector

terça-feira, 11 de abril de 2017

Na segunda-feira de Carnaval uma moça foi assaltada

Na segunda-feira de Carnaval uma moça foi assaltada. Ele lhe deu uma facada no peito e que atingiu a aorta. Ela não tinha participado de nenhum bloco de Carnaval. Ela não estava bêbada. Ela não estava drogada. Ela não estava usando shorts curto, nem blusinha com a barriga de fora. Ela não estava em lugar ermo, nem era de madrugada. Era 19h30 da noite. Ela ia jantar com as amigas de infância que vieram passar o Carnaval no Rio. Ela não havia participado das festas com as amigas. Elas iam jantar. Um programa desses, família. Mas ela não chegou. Porque levou uma facada no peito esperando um Uber na frente de seu prédio. Até aí, tudo certo. Certo? Mas descobriram o seu erro: ela pegou o celular na mão. Ela deu mole. Por isso ela levou uma facada no peito. Ela tinha tudo para estar morta. Porque pegou o celular na mão, as 19h30 de uma segunda-feira de Carnaval enquanto esperava em frente ao seu prédio um Uber para ir jantar com amigas de infância num programa desses, bem família, sabe? Ela cometeu um erro. Deu mole.

Foi isso que ela ouviu. Que ela deu mole, por isso lev...

Nossa sociedade está doente. Porque essa moça foi vítima, mas conseguiram encontrar motivos para justificar o que aconteceu com ela. Não, conseguiram encontrar motivos para justificar que uma tragédia só aconteceu com ela porque ela errou. “Eu não uso celular na rua. Isso nunca vai acontecer comigo”. Nós criamos carapuças e cascas para nos protegermos das tragédias que nós mesmos inventamos. Criamos meios de nos protegermos numa falsa ilusão de que não cometemos os mesmos erros que os outros e nessa de não cometer os mesmos erros que os outros nos convencemos de que viver é errado. De que o certo é se proteger na casca e na carapuça, é não dar mole nunca. Se proteger é conseguir ver onde o outro errou e se garantir de que está fazendo diferente. Sim, chegamos a este ponto. Nos convencemos com nossas mentiras diárias para nos convencermos de que existe ainda um viver.

Mas olha, meu irmão, o caso é que não é a roupa. Não é o lugar ermo. Não é porque é uma mulher contra um homem. Não é porque ela estava andando a pé no meio da madrugada. Não é a festa, a bebida, o celular. O caso é que banalizamos a vida e justificamos que qualquer passo em falso na esquina é contra o fluxo. Precisamos apontar os erros dos outros para dizer que nunca vamos errar, porque fazemos diferente. E vamos, até o fim, procurar o que há de diferente entre o eu e o outro. O caso é que viemos pouco a pouco nos conformando com ter perdido nossa humanidade em troca de nos defendermos de tudo que ameace nossa ilusão de segurança.

Memórias de "Memórias de minhas putas tristes", G. G. Márquez

Me pediu nem que fosse dois dias para revirar o mercado a fundo. Eu repliquei a sério que numa questão dessas, e na minha idade, cada hora é um ano. P. 8
Nunca pensei na idade como se pensa numa goteira no teto que indica a quantidade de vida que vai os restando. P. 12

Fazia meses que tinha previsto que minha crônica de aniversário não seria o mesmo e martelado lamento pelos anos idos, mas o contrário: uma glorificação da velhice. Comecei por me perguntar quando tomei consciência de ser velho, e acho que foi pouco antes daquele dia. Aos quarenta e dois anos havia acudido ao médico por causa de uma dor nas costas que em estorvava para respirar. Ele não deu importância: é uma dor natural na sua idade, falou.
- Então – disse eu -, o que não é natural é a minha idade.
O médico me deu um sorriso de lástima. Vejo que o senhor é um filósofo, disse ele. Foi a primeira vez que pensei na minha idade em termos de velhice, mas não tardei a esquecer o assunto. E me acostumei a despertar cada dia com uma dor diferente que ia mudando de lugar e forma, à medida que passavam os anos. Às vezes parecia ser uma garrotada da morte e no dia seguinte se esfumava. Nessa época ouvi dizer que o primeiro sintoma da velhice é quando a gente começa a se parecer com o próprio pai. (...) A verdade é que as primeiras mudanças são tão lentas que mal se notam, e a gente continua se vendo por dentro como sempre foi, mas de fora os outros reparam. P. 12

A secretárias levaram ao salão um bolo com noventa velas acesas que fizeram com que eu enfrentasse pela primeira vez o número de meus anos. P. 49

Descobri que minha obsessão por cada coisa em seu lugar, cada assunto em seu tempo, cada palavra em seu estilo, não era o prêmio merecido de uma mente em orem, mas, pelo contrário, todo um sistema de simulação inventado por mim para ocultar a desordem da minha natureza. Descobri que não sou disciplinado por virtude, e sim como reação contra a minha negligência; que pareço generoso para encobrir minha mesquinhez, que me faço passar por prudente quando na verdade sou desconfiado e sempre penso o pior, que sou conciliador para não sucumbir às minhas cóleras reprimidas, que só sou pontual para que ninguém saiba como pouco me importa o tempo alheio. Descobri, enfim, que o amor não é um estado da alma e sim um signo do zodíaco. P. 74

A verdade é que eu não aguentava minha alma e começava a tomar consciência da velhice pelas minhas fraquezas diante do amor. P 97

- Faça o que quiser, mas não perca essa criança – disse. – não há pior desgraça que morrer sozinho. P. 110

No começo de julho senti a distância real da morte. Meu coração perdeu o compasso e comecei a ver e a sentir por todos os lados os presságios inequívocos  do final. O mais nítido foi um concerto no Belas-Artes. O ar-condicionado havia falhado (...) . No final, com o Allegretto poco mosso, estremeceu-me a revelação deslumbrante de que estava escutando o último concerto com que o destino me deparava antes de morrer. Não senti dor nem medo, mas a emoção arrasadora de ter conseguido viver até ali. P. 117-8.


Desde então comece a medir a vida não pelos anos, mas pelas décadas. A dos cinquenta havia sido decisiva porque tomei consciência de que quase todo mundo era mais moço do que eu. A os sessenta foi a mais intensa pela suspeita de que já não me sobrava tempo para me enganar. A dos setenta foi temível por uma certa possibilidade de que fosse a última. Ainda assim, quando despertei vivo na primeira manhã de meus noventa anos na cama feliz de Delgadina, me atravessou a ideia complacente de que a vida não fosse algo que transcorre como o rio revolto de Heráclito, mas uma ocasião única de dar a volta na grelha e continuar assando-se do outro lado por noventa anos a mais. P. 119-120

segunda-feira, 10 de abril de 2017

Sobre sentir demais

Eu gostaria de me sentir bem todo o tempo - de ter a capacidade de me sentar e funcionar sem sentir tanta pressão, sem sentir como se o sangue fosse jorrar dos meus olhos e de meus dedos dos pés e das mãos caso eu não faça alguma coisa.


- Matthew Quick, in Perdão, Leonard Peacock, p. 206.

Desculpas

Eu me sinto como se estivesse quebrado. Como se eu nunca mais pudesse me ajustar. Como se não houvesse mais lugar para mim no mundo ou algo assim. Como se eu tivesse ultrapassado o meu tempo de estadia aqui na Terra, e todo mundo estivesse constantemente tentando me dar dicas sobre isso. Como se eu devesse apenas ir embora. - Tento olhar para Herr Silverman, mas não consigo tirar os olhos das luzes da cidade refletidas na água.

- Matthew Quick, in Perdão, Leonard Peacock, p. 186.

quinta-feira, 6 de abril de 2017

Você mudou. Se transformou. De botão para flor.

Você não é mais aquela menina que na faculdade queria morrer.

segunda-feira, 27 de março de 2017

Segunda chance

Na consulta com o médico de tórax.
Ele se joga para trás na cadeira, tira os óculos e passa a mão na testa franzida. Olha para minha mãe:
 - Eu sinceramente não sei como essa menina está viva. Dizem que tem uma hora e que ninguém morre na véspera. Só o peru. Faça essa segunda chance - e que segunda chance! - valer a pena.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Joana e as cores

Hoje ela saiu meio cansada. Joana quase nunca é daquelas pessoas animadas, que acordam cedo, fazem tudo, e saem de casa com um sorriso no rosto, cumprimentando todos os vizinhos que vão encontrando pelo caminho. Mas quase nunca é também daquelas que não abrem a boca nunca, andam cabisbaixas ou têm um desinteresse furtivo pelo mundo. Joana é mais ou menos. É na medida. Nem tudo aquilo, nem tudo isto. Mas hoje? Ah, hoje ela acordou com uma áurea diferente. Ela caminhou meio sem rumo e sequer parou para observar as vitrines dos óculos de sol. Dos vestidos. Dos anéis que ela nunca vai ter interesse em comprar. Ela não demonstrou qualquer interesse em ler os cartazes de promoção do hortifruti, nem perdeu a paciência com qualquer conversa sem graça de um ou outro grupo desses do whatsapp. Joana acordou displicente e assim seguiu o dia. Almoçou qualquer coisa sem graça – o que ela não lembra. Saiu de um restaurante medíocre porque pouco lhe interessava a fachada. Andou como tantas outras pessoas medíocres que ela encontra dia a dia enquanto caminha pela rua, sob o sol quente do meio dia. Transpira como todo mundo na saída do trabalho, nessa cidade em que não faz frio nunca. Alguma coisa mudou em Joana nos últimos dias. Ela perdeu o brilho, perdeu as cores, voltou a usar preto-branco-cinza. Sequer a vida lhe parece mais cinza. É preta. Preta como nunca antes vira.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Desabafo

Eu tinha uns quatro ou cinco anos e essa é a lembrança mais antiga que eu tenho de você. Estávamos nós dois naquela reta de asfalto, imensa, na frente da casa da nona. Você me levava até a metade do caminho, segurando a bicicleta, e depois me soltava. Incentivava para fazer a volta, mas eu sempre descia antes de virar. E você me esperava com aquela tranquilidade, que era igual à do meu avô, a parte calma da família, andar, pequenininha, a empurrar a bicicleta menor ainda, as pernas gordinhas. Você tinha tanta paciência, tanto tempo. E onde aquilo foi parar na adolescência, pai? Como chegamos àquele lugar dos relacionamentos difíceis? Tudo aquilo foi porque eu me pareço tanto com você? Tudo porque o que eu mais detesto em mim eu vejo em você? A gente só aprendeu a ser gente com a minha saída de casa. Parecia que você não concordava com nada do que eu queria para mim, mas foi você quem sempre investiu nos meus sonhos. Se você não quisesse mesmo eu nunca teria chegado onde estou. Primeiro a saída para a faculdade. Você falava sobre medicina e eu queria a psicologia. Eu nem tentei medicina e ainda assim você me levou, você se lembra? Eu nem sabia se ia conseguir entrar na segunda chamada da Universidade, mas nós saímos de casa as 5h da manhã, eu, você e a mãe. Aquelas 4 horas de viagem foi o maior tempo que eu tinha passado ao seu lado até então. E na saída você me abraçou, meio sem jeito, porque a gente não sabia direito como é que se fazia aquilo. E eu fiquei. Você sempre preocupado, se eu precisava de mais dinheiro. Sua preocupação sempre era com o dinheiro, mas suspeitava que era porque você não sabia como perguntar se eu estava bem de outro jeito... Eu lembro que aos 19 anos foi pra você e para a minha mãe que eu escrevi uma carta, nunca entregue e que continua na caixinha das lembranças, no dia em que eu tomei todos os comprimidos de dramin que eu tinha em casa para nunca mais acordar. Depois disso, eu lembro da nona morrendo. E das suas palavras duras no dia em que me pegou na rodoviária para irmos para o hospital: se fosse pra ficar velho “assim” você preferia morrer novo. Minha lágrima silenciosa escorrendo ao seu lado. E sua mão no meu ombro no velório dela, quando eu entrei na igreja e perdi o chão. Depois a faculdade acabou e eu voltei. Lembro do seu orgulho com meu primeiro emprego, um dia depois de terminar a graduação. Lembro do seu sorriso na minha formatura, aquele que está no álbum de formatura. Um dos poucos que eu vi você dar na vida. Então veio o seu diagnóstico: transtorno bipolar. E eu não fazia ideia do que isso ia significar na vida da nossa família. Eu nunca vou saber exatamente tudo o que aconteceu em casa, com você, minha mãe e o Tai, durante os anos em que estive na faculdade. Eu só lidava com seus altos e baixos nas férias. Eu só te achava um cara autoritário demais. Eu só achava minha mãe submissa demais. Eu só ficava com raiva de vocês dois. O tempo todo. Da vida que a gente levava. A graduação em psicologia não me ensinou nada sobre você. E depois veio o mestrado. A seleção inteira você torcendo contra. Mas eu sei que no dia em que saiu o resultado e eu fui aprovada, e não tinha mais ninguém em casa para sorrir comigo, foi você que eu abracei. Eu pulei da escada direto para os seus braços e você me disse: então você vai para o Rio de Janeiro. Sim, pai. Eu ia. E você, contrariado ou não, me apoiou. Você me ajudou a ficar o primeiro mês aqui, sem bolsa, nem um emprego. Você sorriu novamente quando eu liguei dizendo que tinha conseguido um trabalho. E passou os dois anos seguintes perguntando quanto que eu ganhava, querendo perguntar se eu estava precisando de alguma coisa. Eu ficava irritada, mas meu coração te entendia. Foram com esses quase 2 mil km de distância que eu entendi que amava você. Do nosso jeito, mas com todo o meu coração. Foi quando eu chorei como uma criança quando assisti a “Fathers and Daughters” e foi a partir daí que as sessões de análise começaram a se repetir: eu precisava te pedir desculpas por tudo, por sempre, e eu queria você por perto. Mais e mais e mais. Eu queria correr atrás do nosso tempo perdido. E eu me esforcei tanto. Mas nessas ultimas férias você acabou com as minhas energias. Isso, entre nós, acabou com as minhas forças. Eu queria ter ficado mais, mas eu não podia. Minha saúde mental não me permitia. A sua inconstância me deixou exausta. Foram os dias mais difíceis da minha vida. Mais que quando a nona não lembrava mais de mim e quando ela finalmente se foi. Mais que todos os transtornos que tantos anos de bulimia e anorexia puderam me trazer. O seu olhar aguardando que eu te respondesse o que você tinha, como isso foi acontecer contigo, e eu precisar de todas as minhas forças só para conter o choro acabaram comigo. Ouvir você me dizer para ficar quieta, para parar de falar, nos dizer que não somos uma família unida, que a gente só queria o seu dinheiro; quando eu, meu irmão e a mãe juntamos todas as forças que tínhamos para manter você bem e o mais longe possível de qualquer coisa que pudesse te machucar. Se você tivesse visto o desespero nos olhos da mãe no dia em que você se fechou no quarto e tiramos a janela para te tirar de lá, a preocupação dela porque "tudo estava em cima do guarda-roupas"... Pai, a gente chamou o SAMU. E a polícia. Naquele dia. Para te ajudar. Porque nós queríamos você bem. Nós queríamos VOCÊ de volta. E de lá para cá 31 dias se passaram. Eu só vejo você pelos relatos da minha mãe. Eu só falo com você pelos nossos recados trocados. Eu só sei que é você porque no dia em que falei com a mãe sobre a entrevista de um processo seletivo que eu quero tanto e que ela passou meu áudio para você ouvir ela disse que você tinha acabado de acordar e me ouvido e dito que era para eu seguir a minha vida apesar dos porquês. Para continuar com o meu caminho porque você tinha certeza de que eu me importava e que você ia ficar bem. Nesse dia eu sabia que era você. Nem que fosse só por aqueles 5 minutos, mas era você de novo. Era VOCÊ dos treinos na bicicleta em meados dos anos 90. Era você daquela foto do meu aniversário de 1 aninho, ao seu lado, sentada na sua moto. Naquelas palavras eu conseguia ver você. Mas você se perde tão facilmente entre as nuvens. Você me deixa, você deixa a todos nós aqui, sozinhos, perdidos, sem saber o que fazer para te ter de novo em casa, do seu jeito. Eu sinto a sua falta. Eu sinto saudades de você. E esse é o pior tipo de saudade, aquele que a gente sente de quem continua aqui.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

De vazio

De vazio, eu entendo. Começo a achar que não há nada a se fazer para preenchê-lo. Foi o que percebi com as sessões de terapia. Os buracos na sua vida são permanentes. É preciso crescer ao redor deles, como raízes de árvores ao redor do concreto: você se molda a partir das lacunas.

- Paula Hawkins, in A garota no trem, p. 114.

Sobre a tristeza

Mas acabei me tornando uma pessoa triste, e a tristeza cansa depois de um tempo, tanto para quem está triste como para todo mundo em volta.

- Paula Hawkins, in A garota no trem, p. 97-98.

Gritei.

Era uma recém-chegada. Pouco mais um mês que havia se mudado para a grande cidade e lhe fazem um convite para um festa. Foi de um cara que ela conheceu em uma reunião de colegiado da pós. Ele era aluno do doutorado. Encontraram-se pela primeira vez na segunda reunião de que participou. Ele sentou bem à sua frente e olhava muito, mas ela fingiu que não era com ela e deixou para lá. No entanto, quando saiu da sala o encontrou no corredor. Ele puxou assunto. Perguntou seu nome, se apresentou e perguntou se eu precisava de alguma coisa. Disse que ia rolar uma festa no final de semana e se ela não gostaria de ir? Achou gentil, não queria ser mal educada, ele pareceu solícito. Agradeceu e trocaram telefones.

Ele ligou no final da semana e a chamou para o sábado. Disse que era formatura de uma turma de alunos da pós em que ele dava aula e que seria legal, perguntou se ela não queria ir. Acabou aceitando. Ela estava sozinha, recém-chegada. Tudo novo. E queria conhecer a cidade. Combinaram que ele a esperaria na Praça e chegou logo depois dela. Sozinho. Foram caminhando, fizemos um tour pelo Rio antigo e ela adorou. Chegaram à Lapa e ele displicentemente disse que os alunos não puderam ir e o jantar foi desmarcado, mas que podíam aproveitar, de toda forma. Ela achou estranho, mas não reclamou, nem disse que queria voltar. Ele perguntou se estava com fome e comeram uma pizza. Logo em seguida foram a outro bar, um que ele queria lhe mostrar. 

Ele já tinha bebido uma cerveja, e pediu uma tequila. Ela recusei novamente. Ficaram um pouco e ela já queria ir embora. Ele pediu para ficar mais um pouco e em uma brincadeira lhe beijou. Ela ficou assustada, perguntou o que é que ele estava fazendo. Mais uma vez disse que queria ir embora. Ele quis ir em outro bar, disse que após ela escolher e eles beberem alguma coisa lá voltariam. Ela escolheu um qualquer e ele insistiu para que provasse aquela tequila. Ela bebeu uma dose. Duas doses. Foi o suficiente. Sentia-se tonta e acabou ficando com ele. Intenso demais. Bem mais do que gostaria e estava acostumada. Nisso já eram três horas da manhã. Trocaram o ponto de ônibus pelo táxi. O endereço não era o dela. Julgou ter sido o dele e apenas avisou ao motorista para ir à sua rua primeiro. Foi quando ele disse que queria ficar mais um pouco com ela. Ela recusei. Ele insistiu. Muito, muito, muito. Ela disse não, muitas vezes, mas cansou. Foi vencida pelo cansaço. Apenas lhe disse: você não vai me fazer fazer o que eu não quiser? Ele ficou ofendido. Foram para um motel. Ela se sentia mal – por ter ido e por achar que se tinha ido tinha que fazer o que é que fosse para ser feito.
Quando saíram, pela manhã, ela estava um lixo. Disse a si mesma que não queria mais vê-lo. 

Viveram uma relação intensa de dominação, vitimismo e opressão, que ela sequer queria. Ele queria que ela acreditasse que era a vítima e a bruxa má da história. Ele queria que ela acreditasse que era culpada. Ele queria que ela acreditasse que foi porque quis. Ele queria que ela acreditasse que foi porque não disse não mais vezes. Ele queria que ela acreditasse que foi porque tinha bebido um pouco. Ele queria que ela acreditasse que foi porque achava que ele estava sendo legal e ela precisava pagar por aquilo. Ele queria que ela acreditasse que foi porque era uma idiota. Ele tem o dobro da idade dela. Talvez mais. E ela tem medo de encontra-lo na rua. Teve medo de que ele fizesse alguma coisa. Teve medo que ele contasse para todo mundo. Ele era o segundo cara com quem ela dormia na vida. Não usou camisinha e nem tomava anticoncepcional. E teve que lidar com aquilo sozinha, porque ele queria que ela acreditasse que a culpa era toda dela. Que fez porque quis.


Mas nunca foi. 

Ela calou seu grito, por medo de estar sozinha e ser tachada de louca.