terça-feira, 29 de maio de 2018

Flores no asfalto



Volta e meia eu lembro que me sentia um pouco assim, meio “pra baixo”. Tinha sido até mesmo bastante constante e frequente nos últimos dois anos. Bateu com a defesa do mestrado, a saída do emprego, e o “nada dar certo” nessa cidade imensa em que ninguém me conhecia. Bateu com aquele monte de provas que quase foi, mas não foi, e o sentimento generalizado – que aliás, permanece – de que eu sou boazinha em tudo, o que não me leva a ser realmente boa em nada. O estado “pra baixo” vinha junto com o medo de não entrar no doutorado, não conseguir outro emprego “de verdade” – porque a carreira artística exigia algo que eu não tinha encontrado ainda e que sequer chegou com o suceder do tempo, dos dias, e dos acontecimentos. A memória virou essa coisa estranha, que tá ali, mas não tá; que fica, mas não fica; que confunde, que mente. Penso que ela vem também porque nem tudo a gente é capaz de dar nome, mas então tem aquela imagem, aquele cheiro, aqueles olhos, ou a sensação. A lembrança sem-palavra que faz sentir o acontecimento e um esforço danado em dar sentido àquilo que mesmo agora, um ano e três meses depois, e as datas fechadas são sempre as mais difíceis, continua não fazendo sentido. Às vezes eu só fecho os olhos e volto a ser aquela menina. Os 25 anos parecem tão distantes, mas são apenas isso... Um ano e três meses. Alguma coisa da memória também ficou naquele dizer que ouvi tanto: “ah, você é a menina... (do milagre, do assalto, da facada)”. Todos nomes em que eu não conseguia me reconhecer. E talvez por isso das flores. Porque embora eu tenha sido “a menina de tanta coisa”, a única menina que eu queria ser era “a da tatuagem de flores” ou simplesmente “das flores”. Eu queria ser só – apenas isso – a menina que na visceralidade das flores duras que rompem e se recusam a não crescer debaixo de um asfalto qualquer, brota. Faz um furo bem ali, naquele lugar em que ninguém acreditava que poderia haver, ainda, um sopro de vida. Queria que lembrassem mais da minha teimosia que da coragem ou da força, porque não posso me responsabilizar por essas últimas – eu não sei se tinha coragem, ou se simplesmente quando acontece você tem que fazer. Mas teimosia sim. Tinha teimosia na recusa em perder para a dor, para o medo de ter como última lembrança daqui para qualquer lugar que haja, em outro tempo e espaço, a calçada quente de fevereiro ou as mãos sujas de sangue. Fui tão teimosa que ainda hoje me recuso a ter como última memória meus braços sujos nos sonhos que invadem meu sono leve e preocupado dos últimos meses. Esses mesmos em que meu pai não faz nada e minha mãe vai embora. Escolhi as flores – como se elas pudessem me trazer os suspiros bobos de volta, os galhos altivos e o riso fácil; e as folhas leves, verdes e umedecidas pela relva, como se fossem lágrimas, todas as manhãs, muito mais bonitas que as minhas; uma lembrança que não tive, que só veio mais tarde, quando pude entender – se é que isso aconteceu por completo, de fato, ou sequer vai acontecer algum dia: a visceralidade desse rombo das flores no asfalto. Se hoje tem nome? Acho que tem sim.
- “O que aconteceu?”
- “Flores”.

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“Fique firme enquanto dói
Faça flores com a dor
(...)Então floresça de um jeito
Perigoso
Escandaloso
Floresça suave
Do jeito que você preferir”
- pra quem me lê, Tupi Kaur

O risco foi um estrondo no asfalto, no concreto do corpo. A falha, o corte, a marca do real. O inegável, o jamais não-visto. O espaço da infiltração. Infiltra tanto, que mais cedo ou mais tarde o canal infiltrado encontra terra talvez um pouco menos árida. Torna-se terreno com menos concreto e asfalto. E desabrocha.

Floresci.

domingo, 27 de maio de 2018

Nós e laços

A gente tem casco frágil demais por isso inventa tantas proteções. A roupa, o carro, a casa. Se assumíssemos nossa natureza selvagem, primitiva, andaríamos nus no mato. Gerações até engrossar o casco, mas engrossa. O pé acostuma aos galhos, a pele ao sol, o cabelo a ser lavado só com água de rio. Mas atualmente somos finos feito papel. E quando gravemente feridos somos costurados a linha mesmo, ponto por ponto.

Mas somos mais complexos que papel. Artesanato mais intrincado do que o de costurar a manhã. O galo eventualmente, ao tentar tecer uma pessoa, embolaria o canto e perderia os fios que se reencontrariam depois do nó como se nada tivesse acontecido. É por isso. A gente passa a vida toda descobrindo as falhas, consertando ou aprendendo a amar os pontos defeituosos.

Tem gente toalhinha de quermesse, aparentemente uma perfeição branca e simétrica, mas nesses é triste e invisível a goma que os faz nunca serem diferentes. Pano engomado não relaxa. Tem gente que é a bagunça de um cesto de lã. É difícil. Quem nunca pensou em desistir na metade quando a cada movimento de soltura do nó ele ou outros pareciam que mais ainda se apertavam. É desesperador. Mas esse é o desafio, tem beleza e verdade em casa movimento livre da costura caótica.

As pessoas de fios embolados que eu conheço são peças únicas e mutáveis. Amontoados de fios atemporais, que quando entendem que em termos de tecelagem só se pode seguir em frente já se fundiram ao pano único que monta o universo.

- Camila Gobbi, in Escombros e outros pedaços de coisas no chão, 2015.