domingo, 21 de junho de 2015

Sobre perder alguém

Quando pensamos amar uma pessoa, nosso ego investe nela uma imagem que o constitui. Quando a pessoa desaparece ou morre, a relação do ego com o objeto é marcada pelo luto, sendo vivida pelo sujeito como a perda. A libido investida no objeto se retira. A dor é uma decorrência da volta da imagem investida, e, aspecto capital, essa imagem fica desprovida de suporte da realidade do outro. Digo do outro, mas bem que poderia dizer do objeto. Não se trata do outro na sua inteireza, mas da perda desta parte do outro que constituía um aspecto do meu ego.

- Jack Messy, In A pessoa idosa não existe, 1993, p. 15.

sábado, 20 de junho de 2015

O luto, a velhice, e as grandes e pequenas perdas

Aquele dia chegou. Você não esperava que ele fosse chegar realmente, mas ele veio. Aliás, você sabia que chegaria, mas não queria acreditar nesta possibilidade. Não era uma possibilidade. Perder alguém, nunca é. Mas está aí... Bate a sua porta e, a contragosto ou não, só resta abri-la.

Ao longo da vida colecionamos essas perdas. Pequenas ou grandes, às vezes apenas incomodam e deixam uma leve dor de cabeça; em outros casos devastam a casa e o nosso coração. A morte do cachorro, a perda da carteira, o esquecimento do dia de aniversário de um amigo querido, o próprio amigo querido. Os avós, os tios, os primos, os pais, os irmãos. Todos, no final das contas, se vão. Há tanta contradição na vivência destas perdas cotidianas... É também o namoro que acabou, a paquera que não rolou, o sapato que descolou, o pijama furado que a sua mãe jogou fora. Lembra-se do copo de vidro com animações de um aquário que você gostava tanto e que certo dia caiu na pia e quebrou? Você lembra-se também do dia em que a professora querida, da segunda série, se mudou? Ah, você sofreu tanto... Ah, você achava que era a dor mais dolorida que podia sentir. Você achava que era o mais perto do que chamam "tristeza" que você poderia chegar.

Mas, naquela época, você nem imaginava a coleção de perdas que teria que enfrentar dali em diante... Você não poderia chegar nem perto do que era precisar viver o dia em que sua mãe ligou e ao ouvir seu alô saber que era para dizer que sua avó havia partido. Você não podia imaginar como é ouvir, ano a ano, durante a graduação, velhos amigos dizendo que colegas do colégio estavam partindo, com carros partidos pelas BRs de sua região. Passou a doer muito mais, também, quando os telefonemas, as mensagens, traziam a morte prematura de pessoas queridas que tiravam a vida com as próprias mãos. Você chorou tantas e tantas vezes diante de cada comunicado desses, não é? Você havia investido tanto amor naquelas relações...

Do ponto de vista da psicanálise, você pensava amar tanto aquelas pessoas que seu ego investiu toda libido possível na imagem delas - nos cheiros, nas cores dos cabelos, nas lembranças dos sorrisos, nos toques dos dedos. Cada investimento é único e constituinte do seu ser. Mas então, em certo dia, sem que você soubesse e muito menos pudesse prever, essa pessoa desaparece ou morre e então sua vida fica marcada pelo luto. A relação do ego com o objeto é mediada pela perda e o direcionamento de toda aquela energia, da libido, se retira e volta para você. Então, não lhe resta outa coisa, senão investir novamente, em outro lugar, em outra pessoa. Você até consegue, sabe que isso é possível, mas a dor, decorrente da volta da imagem investida, perde todo e qualquer suporte e investir novamente parece algo tão difícil. A imagem daquela pessoa que você amou não se sustenta mais na realidade do outro. Isso quer dizer que, quando o perdeu, qualquer que tenha sido este objeto para o qual você direcionou seu amor, você perdeu um pouco de si mesmo. Era a parte do outro que constituía um aspecto seu. E que se foi.


Ao longo de sua vida, tantas e tantas outras vezes você precisará passar por isso. Lamento dizer mas, ao longo da vida, muitos mais serão as perdas e menos as aquisições. A menopausa vai chegar, a aposentadoria (um dia) também. Virão também as perdas de outros amigos e familiares queridos, com o tempo, também as falhas de memória, os pequenos esquecimentos. Um dia, e com sinceridade eu espero que não, talvez o Alzheimer chegue e esfacele o seu eu de forma lenta e progressiva. Quem sabe ele traga a noção da brevidade da vida, e então tenhamos que falar sobre morte, sobre a morte do corpo e a morte psíquica, que talvez chegue antes daquela, como proposto por Lacan em sua leitura da Antígona, que morre simbolicamente ao ser retirada da presença dos que lhe são significativos.

Nosso medo de envelhecer, nada mais é que o medo do sofrimento que imaginamos que anteceda a morte. Ao buscar sentidos para a velhice, inconscientemente percebemos que estamos convictos de nossa imortalidade e, em se tratando da atemporalidade do inconsciente, a morte não possui representação inconsciente. Para o inconsciente o velho é sempre o outro. E se viver a velhice só diz respeito ao velho, nos localizamos fora das ameaças do tempo. Logo, somos inalcançáveis pela morte.

Neste ponto a morte se atrela à velhice, por conta de um discurso que se propaga no âmbito social, sim, mas também porque se o inconsciente não envelhece nem morre, o ego sim, e o que compõe esse processo se faz marcado pelo sofrimento, tornando a velhice intolerável. Ela guarda em si “a ideia de uma morte de nada. Quando ela surge, porém, torna-se uma morte por velhice”. Segundo Jack Messy (1993, p. 35), "através do medo de envelhecer não estará, acaso, o medo da morte que assim se exprime, ou falando de outro modo: o temor de perder a vida, como tivemos que perder o seio ou a placenta? Mas essa perda é impossível, impensável em demasia, exceto se anteciparmos o ganho de outra vida, celeste ou reencarnada, através da fé num ideal religioso. Talvez não seja a própria morte que cause medo, mas a ideia que temos dela". E então, quantos não são os nossos engodos? Quantas não são as nossas crenças cegas, que tornam nossa passagem pela vida algo mais tolerável de se viver?

- Originalmente publicado em Obvious.

Sobre corações expostos


Viver dói um pouco. É preciso expor algumas marcas que nem sempre ficamos contentes de mostrar. Aliás, em geral, sentimos medo em expor cicatrizes ainda abertas.

Há sempre um certo desespero em viver. Viver é sempre urgente e preciso. E, nesta caminhada de vivente solitário, impossível viver sem as marcas. Aliás, o próprio viver já é uma delas. Ao aceitarmos um pacto com a vida, recebemos também a marca de existir e, conforme avançamos pela tênue linha de existir, mais e mais marcas nós ganhamos. A cada dia uma nova marca, uma nova ferida aberta. Marcas que podem ser expostas ou não, mas que, independentemente disto, ficam sempre ali, à superfície, e ninguém precisa procurar muito para vê-las. O mais interessante, no entanto, é que nos identificamos uns com as marcas e cicatrizes dos outros, e assim formamos laços por similaridade.

Nós nos denunciamos, nos entregamos sem querer, e em um pequeno vacilo acabamos mostrando que somos humanos com feridas expostas. No encontro com o outro, nossas ataduras caem. Sentimo-nos tão frágeis e vulneráveis diante do conhecimento do outro sobre nós mesmos que nos apavoramos. O medo é tão grande que ficamos confusos, envergonhados... Somos desastrados e denunciamos nossos pequenos atrapalhos diários: diante de tantos paninhos quentes, com os quais preparamos retrógradas ataduras para tapar nossas feridas, insistimos em fazer malabarismos pouco ensaiados para manter os paninhos nos locais adequados. Mas, onde seriam tais lugares? O que deveríamos e o que não deveríamos mostrar? E por quê?

Por outro lado, há também aqueles seres mais ousados... Há muita gente por aí que anda com o coração na mão, à mostra e suscetível aos novos contatos, às novas relações. Não são melhores nem piores que nós, que somos mais cautelosos. Não são bons e sequer são ruins. No final das contas, andar por aí com o coração exposto também faz parte da fragilidade humana – o que, às vezes, é até um engodo.

Mas, apesar de tudo, abrir o coração e deixa-lo livre por aí tem lá suas vantagens... Quem nunca se imaginou se jogando de cabeça em uma relação? Quem nunca se forçou para ver no espelho a imagem de alguém que vive uma paixão louca e fugaz? Quem nunca desejou se perder com o coração se esvaindo de amor pelo mundo? Quem é que nunca desejou construir castelos de sonhos sobre a areia do deserto, só para no final degustar sonhos em formato de castelos – fortes e imponentes em uma vida completamente vazia?

Mas, infeliz – ou felizmente – são poucos os que andam por aí como o coração a mostra. É um risco grande e com o desafio aceito uma vez, não há qualquer possibilidade de volta. Essa pequena parcela de agraciados, em geral, vive de forma muito mais intensa, são os abençoados com tal dádiva – julgam-se! – de encontrar alguém digno de seu coração e, em tempos como estes, encontrar alguém que receba seu coração, sem cortes nem melindres, é como ganhar na loteria: a concorrência é dura!

Ei, você que anda por aí de coração à mostra, tudo bem caminhar lento e desapressado. Tudo bem estar mais aberto e sensível ao mundo. Mas, cuidado! Não é justo consigo mesmo se jogar sempre de cabeça, mesmo quando se sabe que a poça é rasa e poucas vezes justa. Tombos de cabeça em geral são mais graves, provocam febre alta e dores de cabeça, além de cicatrizes incuráveis.

- Originalmente publicado em Obvious.

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Sobre a angústia de morte

O medo é uma angústia que encontrou seu objeto. Atrás da angústia de perder a memória, não estará surgindo a de ser despossuído? Assim como o temor de ser roubado na rua recai, deixemos claro, em última instância não sobre o dinheiro da carteira, mas na carteira de identidade, que está com ele na bolsa. A bolsa ou a vida? É a perna que se subtrai sob o peso duma vida ou é o chão que se abre, sob os passos que levam os pés ao túmulo? Enfim, quando uma angústia aparece, bloqueando a respiração e o coração, é uma angústia de abandono, de solidão que durante a noite adquire sua dimensão completa.

- Jack Messy. In A pessoa idosa não existe, 1993, p. 34.

domingo, 14 de junho de 2015

Sobre a espera que não se acaba

Uma das coisas que mais gosto sobre morar em cidade litorânea é justamente o mar. Tê-lo ali, o ano todo, calor ou frio, com sol ou chuva, realmente, não tem preço! E assim posso recorrer a ele sempre que precisar. Foi assim hoje... Há tanta coisa aqui dentro, na fila de processamento em direção a pensar. A maior e mais intensa delas, neste momento é sobre a espera. É a questão sobre como lidar com o fato de ter que esperar em uma sociedade que valoriza tanto o imediatismo. Estou tendo muito que esperar. E é angustiante!
Então hoje, ao caminhar pela baía, na Praia de Icaraí, de jeans e sapatilhas nas mãos, o tempo, Deus, ou qualquer ser supremo me disse que sim, é isto, e apenas isto: é preciso esperar.

sábado, 13 de junho de 2015

Corram para as montanhas!



Vez ou outra todos precisamos de uma “pausa tensa”. Aprendi teoricamente sobre esse conceito no final do ano passado, com uma professora ótima e que marcou meu primeiro semestre no mestrado e o início de uma vida nova, que começa no Rio de Janeiro (mesmo que ela não faça nem ideia disto!). Isso quer dizer que mesmo antes de saber o que a “pausa tensa” queria dizer, eu já buscava por ela.

Sair de casa, deixar o ninho, alçar voos mais longos e ousados; foram uma das minhas primeiras pausas tensas. A segunda, ou a terceira, ou a quarta, foi agora, recentemente, na primeira viagem internacional que fiz, de quatro dias em Santiago, no Chile.

Eu buscava uma tensão menos tensa que a que vivia. De forma alguma eu queria tranquilidade. Mas, com certeza, precisava dar um tempo na vida tão agitada da metrópole. Eu buscava um pouco de paz diante do meu medo da perda e da minha esquiva de lutos recentes. Eu queria me afastar um pouco do trabalho que me pressiona, do mestrado que me angustia, dos relacionamentos que dão pouco ou nada certo, da doença que ronda minha família. Tudo o que eu queria era um descanso, era um correr para as montanhas. E foi o que fiz. Com literalidade, com silêncio, com o coração cheio e o estômago vazio.

Sábado, dia 06.06.2015

As oito horas em ponto eu acordo com o telefone do hotel tocando. Atendo. Do outro lado da linha aquele sotaque forte e arrastado dos chilenos. Ele sabia que eu era brasileira, foi breve, e me disse algo tão rápido e alto que não consegui entender. Mas sabia: a van da agência com que íamos ao Valle Nevado havia chegado! Embarcamos em nosso hotal, na Providencia, rumo às Cordilheiras, sem café da manhã e com um pouquinho de fome, com roupas que não pareciam me aquecer o suficiente e uma garrafa de água com gosto doce e difícil de tomar. Depois de uma hora e meia em uma subida vagarosa e cheia de paradas para fotos, lojinhas e barracas de souvenires e roupas quentes para aluguel, trilhando passos por ruas serpenteadas e estreitas, além de muito bem conservadas, nós chegamos. Mas o topo ainda estava longe. É claro que eu queria chegar lá, bem perto da neve, “no topo do mundo”, sentir o vento congelante bater no meu agasalho alugado pelo rombo de 24000 pesos. Eu queria sentir aquele sol mais perto do meu rosto, o vento cortante deixando minha face um pouco queimada e os lábios ardendo. Eu queria viver tudo aquilo nas próximas duas horas que tinha e minha subida ao ponto mais alto da Cordilheira era de viajante solitária. Continuava me acompanhando o silêncio, uma câmera fotográfica e duas ou três decepções.

Depois de mais alguns minutos de passos largos e respiração ofegante, chegamos lá. Eu e meu corpo. Eu e as botas pesadas que não eram minhas. Eu e meus olhos, que sei, ficam mais verdes ao se misturarem ao azul intenso do céu. Não posso explicar a imensa vontade de chorar que me acometeu, o nó na gargante! E não era por achar que, às vezes, a vida nos exige um pouco demais, sequer porque eu tinha motivos para ficar triste. Eu queria chorar porque sentia que estava no lugar mais lindo do mundo, o lugar em que devia estar, um lugar para mim. Ali, em meio às montanhas geladas da Cordilheira dos Andes, há mais de 3000 metros de altitude, distante de tudo e de todos os rostos conhecidos, eu senti a vida que existia dentro de mim, eu senti um amor que achava que não era capaz de sentir. Por mim, pelas pessoas, pela vida, pela natureza, e por tudo aquilo ali que meus olhos eram capazes de ver e que minha boca não é capaz de definir. Dali, do ponto mais alto a que podia chegar caminhando, eu me sentia gigante, imensa, dona do mundo e; ao mesmo tempo, pequena e impotente diante da grandeza de tudo que existia lá fora. Então era isso! Essa era a minha tão desejada e esperada “pausa tensa”. Então era esse meu grito: "ei, mundo! Dê-me um pouco mais de tempo, e tenha um pouquinho mais de paciência"!

Eu buscava esse sentimento sem nome, que me faz transbordar e que me completa ao sobrar. Que me prende a respiração e devolve a vida. Eu buscava vida. E encontrei. Correndo para as montanhas. Correndo de relacionamentos fugazes. Fugindo de objetivos de vida rasos e inconsistentes. Eu queria mais. Mais choro, mais grito, mais sol queimando a face, mais vento rachando os lábios, mais pausa tensa em sábado de outono transbordante.

Então, como canta uma de minhas bandas favoritas... “Deixa o sol bater na cara, esqueça tudo o que lhe faz mal/Deixe o sol bater no rosto, que aí o desgosto se vai” (Cidadão Quem)!

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Sem mais.

Sem amanhã.
Sem público.
Peço-lhe, amigo, seja feliz. Tenho a vaga impressão que da sua capacidade de ser feliz depende a nossa única esperança.

- Milan Kundera, in A lentidão, 2011, p. 105.

Sobre possibilidades

Cada possibilidade nova que tem a existência, até a menos provável, transforma a existência inteira.

 - Milan Kundera, in A lentidão (2011, p. 32)

Sobre o tempo e a memória. Coisa de sentir


Há um vínculo secreto entre a lentidão e a memória, entre a velocidade e o esquecimento. Imaginemos uma situação das mais comuns: um homem andando na rua. De repente, ele quer se lembrar de alguma coisa, mas a lembrança lhe escapa. Nesse momento, maquinalmente, seus passos ficam mais lentos. Ao contrário, quem está tentando esquecer um incidente penoso que acabou de viver sem querer acelera o passo, como se quisesse rapidamente se afastar daquilo que, no tempo, ainda está muito próximo de si.

- Milan Kundera, in A lentidão ( 2011, p. 30).

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Em matéria de amar

Às vezes você tem que admitir que acabou. Que aquela fase gostosa chegou ao fim, que a Nutella só ficou no fundo do pote, que do café só ficou o restinho do pó. Você virou estrela na vida de alguém e mesmo que quisesse ser cometa, não passa de mais um grãozinho de areia no deserto imenso que é o coração do outro. Você ficou para trás, não foi a escolha certa, não foi nada além de um outro alguém.

Há outros por aí, sempre houveram e sempre haverão. Talvez mais ninguém como essa paixão louca, com esse amor desenfreado e com o qual você amou tanto que chegou a achar que às vezes não seria mais capaz de respirar sem ele. Este, se foi. Mas outros virão. Tenha calma, seja paciente. Deixe que o seu coração sofra o que tem para sofrer agora e não segure as lágrimas. Deixe que ele se lave, deixe que ele se renove. Mas engula as palavras se elas forem te deixar ainda mais triste. Se for para dizer algo, diga a ele que você não se contenta com as migalhas. Que não quer ser sempre a outra, a para quando der, a que recebe sempre um talvez como resposta. Você quer se a única, quer ser inteira, e o quer por inteiro também. Neste jogo é tudo ou nada. Nada de pequenas coisas. Que tudo seja grande, imenso, intenso. Que tudo inunde seus corações, ou deixe que simplesmente se desfaça no ar. Em matéria de amar, é oito ou oitenta.

Sem meias palavras, sem meias verdades, sem meias vontades.