terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Sobre o que se morre com o silêncio

Descobri estes dias que existe no Mali e em Burkina Fasso, dois países que ficam em algum ponto que não sei bem na África ocidental, um povo conhecido como dogom.
Cada dogom acredita ter nascido com uma quantidade determinada de palavras na barriga e, durante a vida, gasta o verbo guardado dentro com os amores, os amigos, a oposição, os irmãos e os vizinhos. Um dia, quando o estoque acaba, o sujeito morre, Os dogons são também grandes conhecedores da astronomia e do início de todas as coisas, e não deixa de ser curioso que a concepção de vida de um povo inteiro comece e do mesmo jeito termine: com o silêncio.

O silêncio, como o tempo e as dores mais profundas, ensina um bocado de coisas. Faz voltar a rir depois de meses em que nada soava engraçado, faz voltar a confiar na humanidade um tempo depois da tarde em que você olhou nos olhos de um homem e ganhou um par de mentiras em troca, faz voltar a ouvir as canções daquele disco da capa branca e só o nome do cantor assinado no meio, o barco vazio, um objeto não identificado, o marinheiro sozinho, os argonautas, a Carolina dos olhos fundos e a dor de todo este mundo, um Salvador, mil novecentos e sessenta e nove, que el mundo fué y será porque ria y alo sé, um objeto não identificado. O silêncio faz voltar no tempo.

O silêncio, como as contradições e as decepções mais duras, ensina um bocado de coisas. Refaz os planos depois das expectativas desfeitas, refaz a pose depois da queda ou da vertigem, refaz o caminho com mala, cuia, cara e coragem quando parece que é o que precisa ser feito. O silêncio, como o tempo, refaz o que precisa ser refeito, olhar, parede, crença, sentido, prazer, história, vontade, saúde, quase tudo. O silêncio, como dizia o mestre Guimarães Rosa, é a gente mesmo, demais.
Pois, para os dogons, ao que parece, o silêncio é a gente mesmo demais e muito mais.

Descendem, acredita-se, dos habitantes de um planeta que orbita ao redor da estrela Sírius e que teriam aterrissado na Terra em eras remotas, inaugurando a civilização. Transmitem suas lendas e tradições de geração em geração há milhares de anos, realizam rituais para a estrela que acreditam ser a origem de tudo. E nascem – olha que coisa – com uma quantidade determinada de palavras dentro da barriga, que acaba quando chega o dia de morrer e eles então morrem em silêncio, porque não têm absolutamente mais nada para fazer.

- Autoria desconhecida.

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