terça-feira, 11 de abril de 2017

Memórias de "Memórias de minhas putas tristes", G. G. Márquez

Me pediu nem que fosse dois dias para revirar o mercado a fundo. Eu repliquei a sério que numa questão dessas, e na minha idade, cada hora é um ano. P. 8
Nunca pensei na idade como se pensa numa goteira no teto que indica a quantidade de vida que vai os restando. P. 12

Fazia meses que tinha previsto que minha crônica de aniversário não seria o mesmo e martelado lamento pelos anos idos, mas o contrário: uma glorificação da velhice. Comecei por me perguntar quando tomei consciência de ser velho, e acho que foi pouco antes daquele dia. Aos quarenta e dois anos havia acudido ao médico por causa de uma dor nas costas que em estorvava para respirar. Ele não deu importância: é uma dor natural na sua idade, falou.
- Então – disse eu -, o que não é natural é a minha idade.
O médico me deu um sorriso de lástima. Vejo que o senhor é um filósofo, disse ele. Foi a primeira vez que pensei na minha idade em termos de velhice, mas não tardei a esquecer o assunto. E me acostumei a despertar cada dia com uma dor diferente que ia mudando de lugar e forma, à medida que passavam os anos. Às vezes parecia ser uma garrotada da morte e no dia seguinte se esfumava. Nessa época ouvi dizer que o primeiro sintoma da velhice é quando a gente começa a se parecer com o próprio pai. (...) A verdade é que as primeiras mudanças são tão lentas que mal se notam, e a gente continua se vendo por dentro como sempre foi, mas de fora os outros reparam. P. 12

A secretárias levaram ao salão um bolo com noventa velas acesas que fizeram com que eu enfrentasse pela primeira vez o número de meus anos. P. 49

Descobri que minha obsessão por cada coisa em seu lugar, cada assunto em seu tempo, cada palavra em seu estilo, não era o prêmio merecido de uma mente em orem, mas, pelo contrário, todo um sistema de simulação inventado por mim para ocultar a desordem da minha natureza. Descobri que não sou disciplinado por virtude, e sim como reação contra a minha negligência; que pareço generoso para encobrir minha mesquinhez, que me faço passar por prudente quando na verdade sou desconfiado e sempre penso o pior, que sou conciliador para não sucumbir às minhas cóleras reprimidas, que só sou pontual para que ninguém saiba como pouco me importa o tempo alheio. Descobri, enfim, que o amor não é um estado da alma e sim um signo do zodíaco. P. 74

A verdade é que eu não aguentava minha alma e começava a tomar consciência da velhice pelas minhas fraquezas diante do amor. P 97

- Faça o que quiser, mas não perca essa criança – disse. – não há pior desgraça que morrer sozinho. P. 110

No começo de julho senti a distância real da morte. Meu coração perdeu o compasso e comecei a ver e a sentir por todos os lados os presságios inequívocos  do final. O mais nítido foi um concerto no Belas-Artes. O ar-condicionado havia falhado (...) . No final, com o Allegretto poco mosso, estremeceu-me a revelação deslumbrante de que estava escutando o último concerto com que o destino me deparava antes de morrer. Não senti dor nem medo, mas a emoção arrasadora de ter conseguido viver até ali. P. 117-8.


Desde então comece a medir a vida não pelos anos, mas pelas décadas. A dos cinquenta havia sido decisiva porque tomei consciência de que quase todo mundo era mais moço do que eu. A os sessenta foi a mais intensa pela suspeita de que já não me sobrava tempo para me enganar. A dos setenta foi temível por uma certa possibilidade de que fosse a última. Ainda assim, quando despertei vivo na primeira manhã de meus noventa anos na cama feliz de Delgadina, me atravessou a ideia complacente de que a vida não fosse algo que transcorre como o rio revolto de Heráclito, mas uma ocasião única de dar a volta na grelha e continuar assando-se do outro lado por noventa anos a mais. P. 119-120

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