E talvez, nesse não lugar, entrecasas, eu tenha vivido na infância uma quase-morte. Literal, como fui, sou. Mais ainda antes das palavras. Ou talvez fosse apenas uma bactéria glutona e indiferente do jardim selvagem que me habitava, mas que eu desconhecia (p. 48).
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Hoje, ao lançar meus anzóis no lago nebuloso do passado, em busca de um mapa cujo único destino sou eu, percebo que escrever me salvou de tantas maneiras e também desta. Desde pequena eu tenho muita raiva - e quase nenhuma resignação. (...) Escrevo para não morrer, mas escrevo também para não matar (p. 61).
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Escolhi viver sem fronteiras definidas, noções não me interessam, limites só me importam os da ética. Tenho um coração andarilho, um corpo mutante, uma mente transgênera. Sou irmã, mãe, filha, homem, cúmplice, bicho bicho, bicho humano, árvore, erva daninha, pedra, rio. Sou palavra em palavras. Mas o meu corpo que viveu e que amou e que gozou e que foi marcado, este tem um lugar (p. 69).
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Como todos que se sabem frágeis, Lili ocultava sua delicadeza para que não a adivinhassem quebrável (p. 89).
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A escrita foi se tornando dolorida. Dizia de uma criança que chutava o cimento. Que se sentia encurralada. Que questionava a existência de Deus. Que sangrava com a desigualdade do mundo. Tão calada sobre o essencial, eu agora gritava. Naqueles dias não importava se era bom ou ruim o que eu escrevia. Importava transformar a dor em marca. Forjar um corpo para além do corpo, na letra (p. 113).
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Aos poucos percebi que só poderia me colocar diante do outro, de todos os outros, como eu era. Quebrada. Com toda a integridade das minhas fraturas, das quais finalmente fiz um vitral. Uma quebrada diante de quebrados, esse é o pacto em meus encontros públicos. (...) "Eu quase me desmancho". Quase. Minha força é, agora eu sei, saber-me quebrada (p. 125).
- Eliane Brum, in Meus desacontecimentos: a história da minha vida com as palavras, 2017.
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