quarta-feira, 26 de junho de 2019

Viajei, viajamos.

Essa não é a primeira vez que eu junto uma porção de coisas e saio por aí. Não foi a primeira e certamente não será a última. Às vezes a viagem é mais longa e tem mais bagagem, não tem prazo para acabar, é uma tentativa de recomeço em um outro lugar. Um novo rumo profissional, uma nova organização pessoal. Outras vezes, porém, essa viagem exige menos, só uma mochila cheinha nas costas, um mesmo tênis para uma semana inteira - no final da viagem ele já tá sabendo dos caminhos sozinho -, o mesmo casaco em todas as fotos, a mesma cara meio durona porque eu sei que sou uma mulher viajando sozinha e nem sempre as pessoas vão facilitar qualquer coisa para mim. Às vezes, no começo, parece que essa viagem é uma tentativa de por alguns dias não precisar falar com ninguém, ficar quieta, sozinha. Sei que você tem desses dias também. E tudo bem, porque a gente é um pouco assim, não é? Humano. Que se cansa de atingir metas, de responder expectativas, de ser legal com todo mundo o tempo todo, de sustentar sorrisos que nem sempre são muito sinceros, já que o dia a dia anda doendo. Às vezes a gente quer dar um tempo da vida mesmo continuando na vida, entende? Nessa viagem eu não sabia bem o que eu queria - era mais como uma promessa, algo que eu disse que faria antes de ir embora, mais uma vez. Foi Lourival quem me explicou, o guia turístico que se ofereceu para me contar a história da Praça Minas Gerais de Mariana, e para quem eu paguei pelo passeio muito menos do que o justo e do que gostaria de ter pago. No finalzinho de seu trabalho, quando nos despedíamos, ele me disse “espero que você encontre o que veio buscar”. Ah, Lourival, seu danadinho! Você me pegou, porque, afinal, o que tinha ido eu buscar no caminho do ouro de Minas Gerais?

Eu não sabia bem o que tinha ido buscar, mas achei que devia guardar aquela pergunta em algum cantinho do coração, para retomar depois. Para tentar, fazer um esforço, responder. E, não sei, talvez devesse começar perguntando: você já se sentiu uma pessoa destruída? Porque hoje eu me sinto uma mulher destruída - e preciso de ao menos um pouquinho de compreensão para que possamos continuar.

Mas eu não sou apenas uma mulher destruída. Eu sou uma mulher destruída que juntou seus pedaços pelo chão e que agora coloca uma mochila nas costas e os cacos nos braços e sai à busca de um porto para se reconstruir. Foi aí que entrou essa viagem, que teve uma coisa meio mística. Falei pouco e degustei muito do que as paisagens, climas e pessoas estavam me dizendo sem me dizer. Mas também não me recusei a qualquer coisa. Talvez a melhor parte de viajar sozinha seja que a gente está muito mais aberto ao que pode acontecer. Foi assim que em Ouro Preto eu conheci o Valter, em frente à Igreja de São Francisco Xavier. Ele tinha suas delicadas obras expostas na murada. Era segunda-feira, bem cedinho, um frio danado. Encolhida dentro do meu poncho peruano passo por ele e o cumprimento. Ele puxa assunto, fala das suas obras. Eu, me aproximo, dou atenção, porque eu sei como é ser artista e não sentir que as pessoas estão muito interessadas na única coisa que você acha que sabe fazer bem. Eu me aproximo, paro, escuto. Teço um comentário ou outro. Ali decidi que ia comprar algum souvenir religioso para a minha mãe - eu não tinha comprado nada nessa viagem, porque não era para levar nada dela além de memórias, e eu decidi ir em um momento financeiro bastante delicado também. Mas eu queria fazer aquilo pelo Valter e pelo trabalho dele. Eu acho que ele merecia. O problema foi que de novo eu senti que me saí melhor naquela nossa pequena relação do que ele. Ele me vendeu um lindo relógio com desenhos de Ouro Preto esculpido em pedra sabão - achei que ia ficar bem na cozinha da minha mãe, mais do que mais um santo, já que eu tinha dado outros de presente do México para ela. Mas, junto com o relógio, eu levei para casa um afago no coração. Valter disse que eu era daquelas pessoas que eram difíceis de aparecer, mas que de vez em quando aparecem. Simples desse jeito. Eu tive vontade de chorar. Mas engoli o choro e então lhe disse que esperava que a gente encontrasse gente que nos fizesse sentir assim com frequência, para que não deixássemos de acreditar na vida. Eu fui mais sincera com ele do que costumo ser com desconhecidos. E então lembrei de uma conversa com uma amiga na semana anterior, na qual eu dizia que gente menos “estudada” vivia melhor que nós, pseudo intelectuais, acadêmicos donos de um suposto saber, e complexificadores da vida. Eu percebo também que ultimamente eu tenho me sentido especialmente atraída pelas pessoas simples. Sem construções de discurso complicadas, cheias das sintaxes, das metáforas. Gente que diz o que quer dizer de forma direta, sem rodeios, mas com delicadeza. Gente assertiva, sabe? Eu não acho que sou mais uma pessoa assim. Esses dias me peguei dizendo em análise que havia trocado meu antigo blog de poesia-simples-existencial pela escrita para a academia, “esse escrever difícil porque não é mesmo para ninguém entender” (sic.). E é engraçado porque quanto menos eu acho que me aproximo da pessoa que eu gostaria ou me orgulharia de ser, mais eu invisto nisso. Mais eu me esforço - sim! Em ser quem eu não quero ser! Não é por ingenuidade. Eu faço análise, eu me penso, me coloco em cheque, me tiro com frequência da zona de conforto, me abro para experiências novas sem garantias de que serão prazeirosas. Eu lido também com o desprazer. Eu dou suporte para ele porque sei que é importante de ser vivido também, para que possa aprender mais sobre mim, entender os meus porquês. E no meio disso tudo, eu ainda acho que invisto muito em quem eu não quero ser? E se eu não largar desse osso porque na verdade é quem eu quero mesmo ser? Sei que é difícil de entender porque é também de se explicar. Nem sempre a gente é capaz de se explicar. Nem sempre a gente é tudo aquilo que sonhou pelos sonhos dos outros, justamente porque não eram nossos, eram dos outros - e só com muita dificuldade a gente entende que precisa entender isso. Mas, aos poucos a gente também vai aprendendo a se respeitar e a respeitar o tempo que precisa para aprender. Como me ensinou o Valter, a gente entende que às vezes a gente demora para se parecer de verdade com quem é, mas que mais cedo ou mais tarde esse eu de verdade aparece e é ao mesmo tempo a coisa mais bonita e a coisa mais simples que já se viu. E se não der para descobrir sozinho, tudo bem também, porque sempre tem alguém para ajudar. Além do Valter, dessa vez eu tive também uma amiga muito querida que várias vezes já foi meu pé no chão, quando eu voo alto demais e não consigo ou não quero voltar. Embora a ache tão jovem, essa menina tem uma sensibilidade do tamanho do mundo - deve ser a alma de artista - e me fez entender que dessa vez, enquanto eu me perdia entre as ladeiras de casas coloridas de São João Del-Rei, na verdade eu me encontrava - “talitarteando” por aí.

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