Era certamente um domingo. Possivelmente um dia quente, de verão. Eu lembro porque me recordo bem do calçãozinho jeans soltinho sobre as coxas grossas. Lembro também dos braços rechonchudos, as curvinhas bem marcadas, mãozinhas firmes no guidão. Havia muitos sorrisos naquelas cenas. Meus, seus. Você corria um pouco comigo, depois me soltava e eu seguia sozinha, você ia atrás gritando, sorrindo comigo, me incentivando a seguir. E eu ia até onde podia, até onde precisava fazer a curva, e então eu freava e precisava voltar carregando a bicicleta, ainda correndo. Quem diria que a vida seria a repetição dessa cena tantas outras vezes… Você atrás, indo comigo até um certo ponto, depois eu seguindo sozinha até onde consigo, mas eu nunca fui de insistir o bastante nas curvas e então precisava descer, e voltar para você. Essa é a lembrança mais vívida que eu tenho de você, daquele período da vida em que a gente ainda sorria com certa frequência.
Quinze anos depois. Outro pedaço de você. Nas fotos você sorri depois do fotógrafo insistir muito. O meu sorriso já não tão sincero, depois de centenas de outras fotos sozinha. É minha formatura e você passou uns dias antes reclamando da viagem que ia precisar fazer. Mas lá você sorriu um pouco e eu vi nos seus olhos que você se emocionou também. Nós ensaiamos a valsa na semana anterior e no dia você fez tudo certinho. Parecia orgulhoso, mas já naquela época eu tinha dúvida do quando de você havia ali. Você nunca foi um pai do tipo presente, mas aquilo ali era algo um pouco diferente.
Oito anos depois e chegamos aqui. Eu olho para você e te vejo nas ausências. Às vezes me pego olhando tão firme nos seus olhos, querendo me certificar que por trás desse castanho-claro dos seus olhos, desse tom de fogo que só você tem, eu vou te ver como eu via um dia, naquela lembrança da infância. Teve um dia em que eu estava com a nona, sentada com ela, sozinha, e parecia que eu estava sozinha mesmo ali. Foi a nossa despedida. Eu tentava falar com ela, insistia nas perguntas, inútil, porque ela não me respondia. Diziam que também ela não nos reconhecia. Mas teve um momento em que ela me olhou firme e por trás daquele verde-escuro dos olhos aquosos dela, tão parecidos com o meu que eu me via, eu a encontrei. Ela tocou minha bochecha com o indicador direito e sumiu de novo. A gente não tinha muitas coisas em comum, assim como não temos eu e você, mas vez e outra a gente se encontrava pelos cantos, nas esquinas. Como naquele meu desejo antigo e que você nunca conseguiu responder direito, de que você se cuide mais, de que você se ame mais, para que eu possa te amar por mais tempo também. Para você me dar mais chances da gente se acertar um dia. Eu sei que você sabe como é. É como quando a gente divide a panela de pinhão, “um pra você, dois pra mim”. O gosto enfarinhado do nosso fruto preferido. A gente não tinha muitas coisas em comum, mas vez e outra a gente se encontra pelos cantos, nas esquinas. Eu sei que no fundo você sabe que eu tenho medo de perder. De perder esse gosto que me vem à boca toda vez que eu falo ou penso – pinhão. Tenho medo de um dia não te encontrar nem mais na luz que de repente reflete no fundo dos seus olhos nos dias claros. Eu tenho medo de te perder no meio da sua loucura, de me perder no meio da sua loucura, de todos nós nos perdermos no meio da sua loucura. Uma vez sonhei com você, o sonho não foi bem esse, mas a sensação: era você, partido em pedaços, e eu juntando os cacos para te olhar e ainda conseguir me ver nos remendos que sobraram de você. A gente ainda continua sendo a gente depois de se partir em tantos pedaços?
2 comentários:
Oi, Talita. Aqui é o Alsan. Lembra de mim? Também tenho feito terapia. Vamos voltar a conversar como antigamente, pra ver se a gente se ajuda? Abs.
Hey!
Que coisa louca entrar aqui e te encontrar... Tinha mais de dois anos... Me escreve? talita.baldin05@gmail.com
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