segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Desenhar a dor


Sigo pensando em uma imagem que eu disse há alguns dias, sobre “a qualquer momento a vida se desprender”. E, dessa imagem, me veio outra imagem nesse final de semana. Eu estava a fim de desenhar, e isso tem sido bem difícil de acontecer nos últimos tempos de tanto “trabalho sério”, mas resolvi terminar dois projetos de meses que havia começado. Eram promessas para amigas. Em algum momento o pensamento me escapou e quando voltou, me vi pegando todos os desenhos que eu fiz e tenho guardados e mandando por correios para pessoas, me desfazendo deles. Me desprendendo. É uma imagem bem poética, eu sei, talvez eu tenha querido deixar mais bonita que verdadeira, essa história. Porque a original não é tão bonita assim… Não tem despedidas, não tem cores e rabiscos enviados pelos correios, nem dá tempo de colocar a roupa mais confortável, o calçado que nos veste melhor, sabe? A versão original da história acaba com uma mensagem de “tô indo” e um remetente que nunca chega. Na história original tem roupas espalhadas pelo quarto, tem um computador ligado fazendo um upload, tem comida descongelando na pia para o almoço de alguém que não vai voltar. Você entende? Não tem como não ficar com essa imagem de “vida que se desprende”, porque a única coisa legítima da história encerra com a respiração acelerada, taquicardia, hipotensão e parada cardíaca. Bem menos poética. Nem um pouco bonita. E desenhar é a coisa mais bonita e que de melhor eu sei fazer com a dor. É a coisa mais bonita e mais sincera, é quando posso me colocar por inteira, nem que seja pra me colar naquele desenho e ir parar na parede de alguém.

terça-feira, 7 de agosto de 2018

Das artes do fingimento

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

Fernando Pessoa

domingo, 29 de julho de 2018

Da dor do sentente...

O olhar da janela e apenas mais do mesmo. Era o mesmo sol de todos os dias, aquela mesma brisa do mar que entrava pela janela todas as manhãs, quando ela a abria ainda semi nua, porque ninguém a via. Mas fazia um tempo que alguma coisa vinha mudando. Ela andava mais agitada, e sempre havia algo no peito que pulsava num ritmo insaciável, era como se houvesse sempre algo por fazer. Ansiedade, diriam. Mas não se parecia apenas com isso, era como se algo mais pulsasse em sua fronte todas as noites e quando acordava, pela manhã, tinha sempre alguma coisa entalada na garganta, algo que ficou preso em algum sonho incompleto. Fazia tempos que não conseguia se lembrar deles. Depois das inquietações perdia as palavras, se perdia no meio de respostas infantis demais para suas próprias perguntas, bobas e inconsistentes. Incoerentes. Havia um vale de medo, um abismo infinito, e todas essas redundâncias que poderíamos utilizar para criar um efeito totalmente desnecessário. Havia um edifício maior no meio de todos aqueles edifícios, entre aquelas janelas, cujas a brisa insistia em entrar com a primeira faísca de sol da manhã, para bater em seu corpo tatuado e semi nu. Por que ela não sentia, meu deus, por que ela não se sentia? Por que todas as paredes começaram a se fechar e, de repente, nenhuma cor mais fazia sentido?

Era igual caranguejo. Se escondia dentro do casco. Ameaçada? Pra dentro do casco. Com frio? Pra dentro do casco. Perdida, sem ninguém? Pra dentro casco. A vida toda dentro do casco.

domingo, 17 de junho de 2018

Ondas

É como se tivesse essas ondas escuras e eu nadasse ate a superfície e achasse que estou indo bem, que eu vou conseguir. Mas aí vem outra e eu estou me afogando de novo.

- No escuro da floresta.

terça-feira, 29 de maio de 2018

Flores no asfalto



Volta e meia eu lembro que me sentia um pouco assim, meio “pra baixo”. Tinha sido até mesmo bastante constante e frequente nos últimos dois anos. Bateu com a defesa do mestrado, a saída do emprego, e o “nada dar certo” nessa cidade imensa em que ninguém me conhecia. Bateu com aquele monte de provas que quase foi, mas não foi, e o sentimento generalizado – que aliás, permanece – de que eu sou boazinha em tudo, o que não me leva a ser realmente boa em nada. O estado “pra baixo” vinha junto com o medo de não entrar no doutorado, não conseguir outro emprego “de verdade” – porque a carreira artística exigia algo que eu não tinha encontrado ainda e que sequer chegou com o suceder do tempo, dos dias, e dos acontecimentos. A memória virou essa coisa estranha, que tá ali, mas não tá; que fica, mas não fica; que confunde, que mente. Penso que ela vem também porque nem tudo a gente é capaz de dar nome, mas então tem aquela imagem, aquele cheiro, aqueles olhos, ou a sensação. A lembrança sem-palavra que faz sentir o acontecimento e um esforço danado em dar sentido àquilo que mesmo agora, um ano e três meses depois, e as datas fechadas são sempre as mais difíceis, continua não fazendo sentido. Às vezes eu só fecho os olhos e volto a ser aquela menina. Os 25 anos parecem tão distantes, mas são apenas isso... Um ano e três meses. Alguma coisa da memória também ficou naquele dizer que ouvi tanto: “ah, você é a menina... (do milagre, do assalto, da facada)”. Todos nomes em que eu não conseguia me reconhecer. E talvez por isso das flores. Porque embora eu tenha sido “a menina de tanta coisa”, a única menina que eu queria ser era “a da tatuagem de flores” ou simplesmente “das flores”. Eu queria ser só – apenas isso – a menina que na visceralidade das flores duras que rompem e se recusam a não crescer debaixo de um asfalto qualquer, brota. Faz um furo bem ali, naquele lugar em que ninguém acreditava que poderia haver, ainda, um sopro de vida. Queria que lembrassem mais da minha teimosia que da coragem ou da força, porque não posso me responsabilizar por essas últimas – eu não sei se tinha coragem, ou se simplesmente quando acontece você tem que fazer. Mas teimosia sim. Tinha teimosia na recusa em perder para a dor, para o medo de ter como última lembrança daqui para qualquer lugar que haja, em outro tempo e espaço, a calçada quente de fevereiro ou as mãos sujas de sangue. Fui tão teimosa que ainda hoje me recuso a ter como última memória meus braços sujos nos sonhos que invadem meu sono leve e preocupado dos últimos meses. Esses mesmos em que meu pai não faz nada e minha mãe vai embora. Escolhi as flores – como se elas pudessem me trazer os suspiros bobos de volta, os galhos altivos e o riso fácil; e as folhas leves, verdes e umedecidas pela relva, como se fossem lágrimas, todas as manhãs, muito mais bonitas que as minhas; uma lembrança que não tive, que só veio mais tarde, quando pude entender – se é que isso aconteceu por completo, de fato, ou sequer vai acontecer algum dia: a visceralidade desse rombo das flores no asfalto. Se hoje tem nome? Acho que tem sim.
- “O que aconteceu?”
- “Flores”.

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“Fique firme enquanto dói
Faça flores com a dor
(...)Então floresça de um jeito
Perigoso
Escandaloso
Floresça suave
Do jeito que você preferir”
- pra quem me lê, Tupi Kaur

O risco foi um estrondo no asfalto, no concreto do corpo. A falha, o corte, a marca do real. O inegável, o jamais não-visto. O espaço da infiltração. Infiltra tanto, que mais cedo ou mais tarde o canal infiltrado encontra terra talvez um pouco menos árida. Torna-se terreno com menos concreto e asfalto. E desabrocha.

Floresci.