Descobri estes dias que existe no Mali e em Burkina Fasso, dois países que ficam em algum ponto que não sei bem na África ocidental, um povo conhecido como dogom.
Cada dogom acredita ter nascido com uma quantidade determinada de palavras na barriga e, durante a vida, gasta o verbo guardado dentro com os amores, os amigos, a oposição, os irmãos e o vizinhos. Um dia, quando o estoque acaba, o sujeito morre, Os dogons - a tribo de camponeses, artistas e feiticeiros teria cerca de 200 mil integrantes espalhados por diversas aldeias - são também grandes conhecedores da astronomia e do início de todas as coisas, e não deixa de ser curioso que a concepção de vida de um povo inteiro comece e do mesmo jeito termine: com o silêncio.
O silêncio, como o tempo e as dores mais profundas, ensina um bocado de coisas. Faz voltar a rir depois de meses em que nada soava engraçado, faz voltar a confiar na humanidade um tempo depois da tarde em que você olhou nos olhos de um homem e ganhou um par de mentiras em troca, faz voltar a ouvir as canções daquele disco da capa branca e só o nome do cantor assinado no meio, Irene ri, o barco vazio, um objeto não identificado, o marinheiro sozinho, os argonautas, a Carolina dos olhos fundos e a dor de todo este mundo, um Salvador, mil novecentos e sessenta e nove, que el mundo fué y será porque ria y alo sé, um objeto não identificado. O silêncio faz voltar no tempo.
O silêncio, como as contradições e as decepções mais duras, ensina um bocado de coisas. Refaz os planos depois das expectativas desfeitas, refaz a pose depois da queda ou da vertigem, refaz o caminho com mala, cuia, cara e coragem quando parece que é o que precisa ser feito. O silêncio, como o tempo, refaz o que precisa ser refeito, olhar, parede, crença, sentido, prazer, história, vontade, saúde, quase tudo. O silêncio, como dizia o mestre Guimarães Rosa, é a gente mesmo, demais.
Pois, para os dogons, ao que parece, o silêncio é a gente mesmo demais e muito mais. Eles vivem com apenas 40 centímetros de chuva por ano e temperaturas de até 60 graus centígrados, entre casas de pedra e barro cobertas de folhas que ajudam a amenizar o calor escaldante e pequenos celeiros que armazenam os grãos, as espigas de milho, as cebolas, o amendoim, o algodão e o fumo que produzem.
Descendem, acredita-se, dos habitantes de um planeta que orbita ao redor da estrela Sírius e que teriam aterrissado na Terra em eras remotas, inaugurando a civilização. Transmitem suas lendas e tradições de geração em geração há milhares de anos, realizam rituais para a estrela que acreditam ser a origem de tudo. E nascem – olha que coisa – com uma quantidade determinada de palavras dentro da barriga, que acaba quando chega o dia de morrer e eles então morrem em silêncio, porque não têm absolutamente mais nada para fazer.
- Ana Laura Nahas.
Um comentário:
"E morrem em silêncio, porque não têm mais nada a fazer"...
Ou será a dizer?!
Hoje, minha analogia de mundo não vê as coisas como os dogons... Talvez se vesse eu fosse muito mais feliz -- não que eu não seja isso -- mas não vejo. Se bem que, pega assim, deprevinida eu poderia concordar com eles e aceitar que eles -- os dogons -- sejam os primeiros habitantes da Terra e que de fato iniciaram a civilização e então, lamentaria por nós -- discípulos de um mestre maior -- termos nos rebelado à tradição primeira e ver o mundo como uma ilusão, como vê Nietzsche, ou como água, como diria Tales.
Essas visões deterministas de vida deprimem, não concordam?! Aceitariam vocês viverem em um mundo que não existe e dever a existência ao nada, sem motivo, respirar por respirar, não amar e não sentir culpa?
Não me presto! De fato, não me presto a tal ponto de vista. Posso até iludir-me conscientemente -- se é que isso é possível -- mas não aceito viver por viver. Acredito na minha missão e vej oa minha vida como um jardim... Ainda com poucas flores, mas que lá no fim serão muitas rosas vermelhas. E silêncio.
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