sábado, 20 de junho de 2015

O luto, a velhice, e as grandes e pequenas perdas

Aquele dia chegou. Você não esperava que ele fosse chegar realmente, mas ele veio. Aliás, você sabia que chegaria, mas não queria acreditar nesta possibilidade. Não era uma possibilidade. Perder alguém, nunca é. Mas está aí... Bate a sua porta e, a contragosto ou não, só resta abri-la.

Ao longo da vida colecionamos essas perdas. Pequenas ou grandes, às vezes apenas incomodam e deixam uma leve dor de cabeça; em outros casos devastam a casa e o nosso coração. A morte do cachorro, a perda da carteira, o esquecimento do dia de aniversário de um amigo querido, o próprio amigo querido. Os avós, os tios, os primos, os pais, os irmãos. Todos, no final das contas, se vão. Há tanta contradição na vivência destas perdas cotidianas... É também o namoro que acabou, a paquera que não rolou, o sapato que descolou, o pijama furado que a sua mãe jogou fora. Lembra-se do copo de vidro com animações de um aquário que você gostava tanto e que certo dia caiu na pia e quebrou? Você lembra-se também do dia em que a professora querida, da segunda série, se mudou? Ah, você sofreu tanto... Ah, você achava que era a dor mais dolorida que podia sentir. Você achava que era o mais perto do que chamam "tristeza" que você poderia chegar.

Mas, naquela época, você nem imaginava a coleção de perdas que teria que enfrentar dali em diante... Você não poderia chegar nem perto do que era precisar viver o dia em que sua mãe ligou e ao ouvir seu alô saber que era para dizer que sua avó havia partido. Você não podia imaginar como é ouvir, ano a ano, durante a graduação, velhos amigos dizendo que colegas do colégio estavam partindo, com carros partidos pelas BRs de sua região. Passou a doer muito mais, também, quando os telefonemas, as mensagens, traziam a morte prematura de pessoas queridas que tiravam a vida com as próprias mãos. Você chorou tantas e tantas vezes diante de cada comunicado desses, não é? Você havia investido tanto amor naquelas relações...

Do ponto de vista da psicanálise, você pensava amar tanto aquelas pessoas que seu ego investiu toda libido possível na imagem delas - nos cheiros, nas cores dos cabelos, nas lembranças dos sorrisos, nos toques dos dedos. Cada investimento é único e constituinte do seu ser. Mas então, em certo dia, sem que você soubesse e muito menos pudesse prever, essa pessoa desaparece ou morre e então sua vida fica marcada pelo luto. A relação do ego com o objeto é mediada pela perda e o direcionamento de toda aquela energia, da libido, se retira e volta para você. Então, não lhe resta outa coisa, senão investir novamente, em outro lugar, em outra pessoa. Você até consegue, sabe que isso é possível, mas a dor, decorrente da volta da imagem investida, perde todo e qualquer suporte e investir novamente parece algo tão difícil. A imagem daquela pessoa que você amou não se sustenta mais na realidade do outro. Isso quer dizer que, quando o perdeu, qualquer que tenha sido este objeto para o qual você direcionou seu amor, você perdeu um pouco de si mesmo. Era a parte do outro que constituía um aspecto seu. E que se foi.


Ao longo de sua vida, tantas e tantas outras vezes você precisará passar por isso. Lamento dizer mas, ao longo da vida, muitos mais serão as perdas e menos as aquisições. A menopausa vai chegar, a aposentadoria (um dia) também. Virão também as perdas de outros amigos e familiares queridos, com o tempo, também as falhas de memória, os pequenos esquecimentos. Um dia, e com sinceridade eu espero que não, talvez o Alzheimer chegue e esfacele o seu eu de forma lenta e progressiva. Quem sabe ele traga a noção da brevidade da vida, e então tenhamos que falar sobre morte, sobre a morte do corpo e a morte psíquica, que talvez chegue antes daquela, como proposto por Lacan em sua leitura da Antígona, que morre simbolicamente ao ser retirada da presença dos que lhe são significativos.

Nosso medo de envelhecer, nada mais é que o medo do sofrimento que imaginamos que anteceda a morte. Ao buscar sentidos para a velhice, inconscientemente percebemos que estamos convictos de nossa imortalidade e, em se tratando da atemporalidade do inconsciente, a morte não possui representação inconsciente. Para o inconsciente o velho é sempre o outro. E se viver a velhice só diz respeito ao velho, nos localizamos fora das ameaças do tempo. Logo, somos inalcançáveis pela morte.

Neste ponto a morte se atrela à velhice, por conta de um discurso que se propaga no âmbito social, sim, mas também porque se o inconsciente não envelhece nem morre, o ego sim, e o que compõe esse processo se faz marcado pelo sofrimento, tornando a velhice intolerável. Ela guarda em si “a ideia de uma morte de nada. Quando ela surge, porém, torna-se uma morte por velhice”. Segundo Jack Messy (1993, p. 35), "através do medo de envelhecer não estará, acaso, o medo da morte que assim se exprime, ou falando de outro modo: o temor de perder a vida, como tivemos que perder o seio ou a placenta? Mas essa perda é impossível, impensável em demasia, exceto se anteciparmos o ganho de outra vida, celeste ou reencarnada, através da fé num ideal religioso. Talvez não seja a própria morte que cause medo, mas a ideia que temos dela". E então, quantos não são os nossos engodos? Quantas não são as nossas crenças cegas, que tornam nossa passagem pela vida algo mais tolerável de se viver?

- Originalmente publicado em Obvious.

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