segunda-feira, 24 de março de 2014

Pela última vez


Era uma vez uma menina. Ela tinha sido uma criança amada e amável. Todos admiravam aqueles cachinhos pretos correndo pela casa, aqueles sorrisos de lábios vermelhos correndo pelo gramado da casa número 3369 da Rua Diogo Antônio Feijó. Suas gargalhadas eram frequentes, incontidas e deliciosas de serem ouvidas. Fazia amizade fácil com qualquer transeunte da rua e até mesmo com os garis do caminhão de lixo, que a presenteavam com qualquer coisa que pudesse ser aproveitável.

E foi ali que ela cresceu. Foi naquela rua que ela chorou ao cair de bicicleta pela primeira vez, ali que levou o primeiro ponto na testa depois de uma briga com o irmão mais novo, foi ali que ela se apaixonou pelo filho da vizinha. Foi ali, na casa número 3369, que ela descobriu que as pessoas um dia partiam e saiu às pressas em uma manhã de segunda-feira para segurar pela última vez a mão gelada de seu avô que partia. Foi ali que rasgou as primeiras cartas não correspondidas, que inventou as primeiras mentiras sobre comida. Foi ali que descobriu que poderia ser linda, ou que poderia chegar o dia em que ninguém a amaria. Foi naquela casa, no quarto com a janela para a rua, que ela disse que não acreditava em amor e que sonhou com o primeiro beijo, a primeira vez, com um dia quem sabe se casar. Foi naquele quarto, naquela cama, que ela descobriu que a vida havia lhe enganado tantas vezes quanto fosse possível. Foi ali que esboçou os primeiros desenhos, que decorou os primeiros textos. Foram aquelas as paredes que ecoaram sua voz em entonações distintas para um texto difícil – as mesmas que ecoaram soluços de choro madrugadas a dentro. Foram as paredes que esconderam suas mentiras, que preservaram seus segredos, que abafaram seus pedidos de socorro.

Foi para aquela mesma casa que ela se despediu, com lágrimas na voz, dizendo que não voltaria, que era um simples tchau final. A mesma casa, no final da rua, que lhe recebe de braços apertos e com um abraço apertado e sufocante, lhe dando as boas vindas, dizendo que tudo continuava guardado, abafado pelas mesmas paredes. São os mesmos versos escritos com espinhos nas brancas paredes da madrugada, as mesmas caixas incolores amassadas na dispensa do guarda-roupas, as mesmas roupas largas, velhas, despedaçadas.

Alguns anos depois ela volta. Sem os cachos negros, sem os sorrisos vermelhos, sem as gargalhadas inconfundíveis. Ela volta de salto alto, com roupas novas e medos antigos. Ela volta sem entender porquê voltou. Volta sem escolher voltar. Mas sabe que tem que ser forte. Sabe que a vida é rude. Sabe que para voltar é preciso suportar. E então, retoma o antigo sorriso nos lábios carnudos, aperta firme a alça da mala, e bate na porta.

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