quinta-feira, 3 de abril de 2014

Crônica de Juliana

Juliana fechara os olhos. Era uma noite fria de outono. Naquele dia tudo tinha dado errado. Perdera seus óculos em algum lugar que não sabia onde era – na verdade, ela jurava que eles haviam se fragmentado no ar. Depois, sentada no banco à espera do ônibus para ir para casa ela pensava nele. Pensava no quanto ele havia mudado, no quanto estava diferente. Havia engordado muito, é verdade, desde que se viram pela última vez, ele estava muito mais gordo e com um aspecto descuidado, desleixado. Juliana se culpava – mas que droga!, eles não estavam mais juntos, ela foi quem havia terminado e ele sabia que os motivos eram justos. Mas ele bateu a porta, como se ela estivesse errada, como se o que fizera fosse desleal. Mas ele queria coloca-la como a vilã da estória, que insolente! e ela, desde então, vinha tentando consertar sua vida sem pensar muito no quanto aquele namoro a havia estragado. No entanto, ao fechar os olhos, onde quer que estivesse distraída, suas palavras ecoavam na mente de Juliana: ela era uma patricinha babaca que não conseguia passar por um espelho sem olhar para o tamanho de sua bunda. O pior é que Juliana acreditava que ele estava certo. Ela concordava com ele, mas se zangava, porque ele jamais entenderia o que ela sentia, ele simplesmente não a compreendia. Não podia compreender, porque ela nunca o deixara entrar de verdade. Ela mentia.

Para que a amassem Juliana precisava se passar por forte, ou assim ela imaginava. Não chorava nunca, nem quando caiu correndo e cortou o joelho, nem quando seu avô segurou sua mão tão forte em seu último segundo de vida que a fez quase desmaiar. Juliana não dava satisfações, não falava sobre si. Evitava as festas, as baladas, as confraternizações. Juliana, no fundinho, não era arrogante, ao contrário, não se achava digna de viver coisas boas, de sorrir. Ela achava que era uma pessoa tão ruim que merecia as noites escuras em que abriam a porta devagarinho, achava que merecia que apertassem suas pernas, seus braços, que deixassem marcas em seu peito, porque ela era suja e havia sido uma menina mentirosa – e má. E merecia, também, que ele a achasse uma pedra de gelo, porque era incapaz de corresponder a um amor. Pena que ele se enganava em achar que ela tinha outros amores. Ela não tinha ninguém – e só por não ter tido carinho se julgava de amor impossível. Ela se arrepiava quando SÓ ele a tocava. Porque ninguém mais fazia isto. No fundo, era uma pessoa fraca, dessas que ficam enjoadas quando se sentem abaladas ou ameaçadas, dessas que escrevem quando se sentem injuriadas.

Juliana era sozinha. Tão só quanto a lua em noite sem estrelas. Juliana chora, mas ninguém vê, sussurra e ninguém escuta. Ela também aperta seus braços e suas pernas, esfrega suas mãos nas coxas, como se pudesse tirar as marcas invisíveis que só ela sabe que existem ali. Muitas vezes ela sai com seus tênis e tem vontade de correr, correr, correr, até sumir. Muitas vezes, após lavar o rosto com água gelada para desinchar os olhos, ela tem vontade de ficar com a cabeça imersa na pia até parar de respirar. Mas ela não consegue. Acha que já havia dado problemas demais, que já tinha trazido problemas demais. Então hoje, olhar no espelho e chorar baixinho por não gostar do que vê é a coisa mais sensata que pode fazer: ela se mostra a si mesma. Sem as roupas de marca, sem as maquiagens caras, sem os óculos escuros. Ela se mostra a menina frágil de sorriso ameaçador, ela mostra os punhos cerrados. Ela se mostra. Ela mo(n)stra.

Mais uma vez precisa correr para o banheiro quando as verdades a invadem. Seu olhar a enoja, sua boca a enoja, suas mãos a enojam, seus pensamentos, aqueles pensamentos imundos, tomam conta de suas roupas e ela precisa tirá-las, precisa de um banho frio. Não importa o que pensam dela, não importa como a veem. Não importa se lhe pedem para descrever o que vê, pois ela é incapaz de responder o que vê: o que vê é o que sente e pensa, e isso tampouco é verdadeiro. Mas mesmo querendo que não a vejam, que finjam que não existe, ela investe em um corpo apresentável, às vezes usa decotes e roupas curtas. Outras vezes, só moletom. Depende de seu espírito, dependo do quanto ela pagaria para ser si mesma naquele dia. Pagaria? Não. Não valeria nem um centavo.

Mas neste dia, sentada no banco à espera de um ônibus, parece que ela finalmente entende para que está ali. Ela ergue as mãos e se dá por vencida, olha para o céu e diz em pensamento que ok, não lhe é permitido desistir, mas pois bem, as outras regras é ela quem faria. Ela não ia se apegar a ninguém, nada para além de um beijo, nada. Ela não choraria na frente de ninguém, especialmente dele, nunca mais. Ela não se ressentiria pelo mal que pensa que faz a ele também. Sempre que se achasse inadequada para qualquer situação, fecharia os olhos e trancaria a respiração até quase desmaiar – para se lembrar de que a qualquer momento aquilo tudo iria acabar, seu maior medo e maior salvação. E, por fim, a última regra e a mais importante: ela nunca mais se deixaria abalar pelo que fizeram com ela. Mas abalaria a todos com o que faria com o mundo.

Porém, naquela noite, Juliana não dormiu. De repente percebia que era sonho, ou pesadelo, e ela sangrara até o fim. Até seus olhos perderem o tom musgo de verde e se tornarem escuros e marrons.

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